Precisamos de falar sobre Presidenciais (2/5)
2º fascículo: compreender as fundações do mosaico da direita nesta eleição presidencial.
As origens das muitas faces da direita política
Quando, a partir da esquerda, nos propomos a refletir sobre as fundações da hegemonia da direita num determinado momento político, é fatal desembocarmos no paradoxo que atormenta o nosso espaço desde que, no final do século XIX, a maioria das democracias liberais adotou o sufrágio universal: “como pode o campo político da direita, cuja existência se justifica pela defesa de uma minoria proprietária, se mostrar capaz de obter a maioria eleitoral?”
A resposta a esta questão assenta sempre na interação entre dispositivos sociais de realinhamento de classe e da existência de meios que facilitam a sua amplificação e penetração entre as massas. A manifestação concreta dos elementos desta interação é intensamente contingente, resultando de especifidades históricas, tecnológicas e culturais. No entanto, as formas abstratas nas quais assenta a deslocação dos interesses de classe é sempre uma variação de dois elementos: (i) um elemento aspiracional, que assegura às classes populares que a defesa dos interesses materiais da classe proprietária é do seu mais direto interesse. Isto é, um regime de baixa tensão que favoreça a acumulação de capital acabará por resultar em níveis salariais e de desenvolvimento mais elevados do que se as classes populares defendessem soluções de embate social, onde preponderam a redistribuição de rendimento e riqueza a priori. Esta noção ficaria conhecida como trickle-down economics e tornou-se uma parte fundamental da prática discursiva da direita a partir dos 80.
No entanto, existe um segundo elemento mais predominante ao longo da história da direita. Podemos designar este segundo elemento por (ii) elemento cultural. Aqui o conceito capturado pela palavra cultural deve ser entendido no seu sentido mais amplo, compaginando o conjunto de crenças, práticas e imaginários partilhados por uma determinada sociedade num determinado estado do seu desenvolvimento. É aqui que podemos encontrar elementos como a religião, as discriminações sexuais e raciais ou o patriotismo. Ao contrário do elemento aspiracional, o elemento cultural não seduz as classes trabalhadores pelo convite ao esquecimento da justiça social em nome do interesse individual mais imediato - o aforismo de que “se votares em nós, vais viver melhor, mesmo que numa sociedade mais desigual”. Bem pelo contrário. O realinhamento de classe é operado pelo apelo a um imaginário coletivo, que substitui a mobilização emancipatória - prometida pela esquerda - pela necessidade de agir pela preservação de valores tidos por ameaçados - “a defesa dos nossos valores em risco”, como é comum afirmar-se, presente na simples evolução dos tempos ou imposta pela ameaça de novos valores externos. No lugar dos interesses contrários das assimetrias de classe coloca-se o desígnio unívoco de uma massa homogénea interclassista - um “nós” imaginado na defesa de valores, usos e costumes, cuja legitimidade presumida advém da sua atemporalidade - “isto é quem nós somos e sempre somos assim” - quando, na verdade, essas representações imaginadas são bem recentes e contraem dívidas no balcão dos nacionalismos do século XIX e os fascismo século XX.
Não é necessário um grande exercício de memória para como este elemento cultural é vezeiro na atuação da direita no século XX em Portugal. No fascismo, com a mobilização do catolicismo contra a República; na eleição da religião como pilar do regime; na promoção de um imaginário mítico de brandos costumes, onde a humildade e a resignação são elevadas a virtudes de um povo; ou, ainda, na crónica laudatória da missão civilizadora da pátria, sobretudo quando se tratou de pedir aos filhos do povo que morressem pelo império. Mais tarde, em democracia, nas alianças de classe a norte contra a ameaça comunista, mas também na ideia de estabilização e normalidade contra a desordem e o barulho causados pela esquerda e, mais recentemente, contra a ameaça dos imigrantes à segurança e costumes do país.
Importa ainda notar que estratégias que privilegiam o elemento cultural não negligenciam totalmente o elemento aspiracional. No entanto, tendem a subordiná-lo a uma ideia de desenvolvimento coletivo de uma entidade supraclassista - a nação - que só pode ser atingido se mantida a autoridade, previsibilidade e ausência de conflito social que a esquerda ameaça introduzir. Uma ilustração clara deste elemento aspiracional presente, mas secundarizado, é a iconografia fascista dos anos 30 e 40, a qual, apesar de trazer o tradicionalismo e o conservadorismo para o centro da sua missão - lembremo-nos nas ilustrações do romantismo bucólico da Lição de Salazar -não deixava de exibir as obras públicas de Duarte Pacheco e de as usar como horizonte de desenvolvimento e bem-estar.
Cada um destes elementos pode depois ser corporizado por diferentes perfis políticos, num misto de necessidade do tempo histórico e de especificidades dos seus protagonistas. Dois perfis gozaram de grande proeminência na construção de representações políticas hegemónicas por parte da direita na história recente de Portugal: o ascetismo tecnocrático e a bonomia paternalista. Apesar de muito diferentes, ambos foram frequentemente encontrar a sua manifestação concreta na figura do professor, o que, importante ressalvar, não se trata de uma coincidência: é mais fácil aceitar uma ordem desigual, como a preconizada pela direita, quando ela é proferida por um sujeito com posição de autoridade reconhecida, cujo conhecimento assegura que a ordem social presente não pode ser desvirtuada, como só sabem os que têm acesso aos altos conhecimentos da ciência. Também aqui não é difícil pensar nas figuras que se enquadram estes perfis. A personificação do tecnocrata asceta confunde-se com o berço e imaginário narrativo do fascismo português, construído a partir da figura de Salazar, naquilo que Fernando Rosas certeiramente definiu como fascismo de cátedra: o professor de Finanças, imbuído de conhecimento e despojado de emoções, tão casto quanto um cardeal, a emprestar o seu génio de forma abnegada ao país. E que dizer de Cavaco, afinal, apenas um decalque fiel deste perfil adaptado às novas circunstâncias do Portugal pós-democrático e da recomposição da direita internacional?
Em contraponto, outros “professores” fizeram uso da sua bonomia paternalista. Homens afáveis, de jeitos brandos e palavras doces, sempre prontos a explicar aos “simples” os factos do mundo, com aquele modo generoso de quem transige descer ao nível de outra casta. Palavras que amolecem os espíritos e lhes mostram que é no consenso de interesses transmitido pelas suas palavras que reside o fiel da balança social. De novo, com as devidas nuances de contexto, é uma descrição fiel de Marcello Caetano e do modo como, com as suas Conversas em Família, tentou adornar o fascimo com maquilhagem humanista , numa desesperada tentativa de alargar a base de apoio do regime; mas também de Marcelo Rebelo Sousa, na sua caminhada triunfal para a presidência da República depois de mais de uma década a “explicar” os acontecimentos da semana ao povo, num longo espaço de comentário, onde as questões à medida o faziam brilhar como a voz da ponderação perante todos os poderes.
Como surge evidente, não é a estratégia de implantação (aspiracional ou cultural) nem o tipo de perfil (tecnocrata ou paternalista) que determinam o tipo de regime ou se deixa determinar por ele. Diferentes perfis podem coexistir em diferentes regimes. O que determina que tipo de regime prevalece ou o ritmo de transição entre regimes é a sua utilidade na resolução das contradições da acumulação capitalista. Ao contrário do que nos é dito por uma certa mitologia liberal, capitalismo e democracia não são fenómenos que se reforçam. Antes, o capitalismo mantém uma relação instrumental com a democracia, usando-a como escudo legitimador nos contextos históricos em que tal é necessário, mas nunca se coibindo de a deixar cair e resvalar para o fascismo se tal se lhe afigurar conveniente.
A boa notícia - se é que ainda as há, nestes tempos de inquietação - é que não existem transformações sociais deterministas, por mais intensos e aparentemente inelutáveis que sejam os determinantes económicos e de classe sobre os quais assentam. O espaço da agência das ações de resistência coletiva existe e deve ser exercido em toda a sua extensão por aqueles fazem da resistência ao fascismo e da luta pelo socialismo referenciais do seu horizonte político e ético. É também por isso que a esquerda não pode deixar de ir a terreno nestas eleições.
A sua manifestação neste ato eleitoral
A secção anterior procurou apresentar um mapa analítico de como a direita se desmultiplica em estratégias, perfis e regimes para operar os reajustamentos eleitorais do padrão de voto que permitem a sua ascensão ao poder numa democracia com voto universal. Ainda que tenha sido uma longa digressão de contornos abstratos, tentarei demonstrar como este mapa se revela útil na tarefa de entender o mosaico de candidaturas da direita política nesta eleição. Na verdade, todos os candidatos da direita com relevância (Marques Mendes, Gouveia e Melo, André Ventura e, em menor medida, Mariana Leitão) podem ser enquadrados em cada uma destas estratégias e/ou perfis; e, mais relevante ainda, a forma como alguns candidatos tomam ascendente perante outros é reflexo de como as alterações operadas na economia política internacional agem como choques exógenos sobre a política interna, causando abalos no status quo da direita portuguesa que refletem o ajustamento necessário entre velhos e o novos equilíbrios que asseguram o controlo da classe dominante sobre o processo político.
Marques Mendes
A trajetória de candidatura Marques Mendes é uma cópia fiel da estratégia antes seguida pelo atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Ambos foram líderes mal-sucedidos do PSD, incapazes de se tornarem primeiros-ministros, e a ambos foi oferecido um espaço de comentário, por largos anos, no horário de maior audiência, a fim de reconstruirem a sua imagem pública. Os percursos são tão decalcados que, por momentos, nos questionamos se não estaremos a assistir à célebre cena de um conto dos irmãos Grimm, onde duas crianças se aventuram num bosque e largam migalhas pelo trilho, para terem a certeza de seguirem o mesmo caminho no regresso.
As entrevistas longas, de balanço da semana, com questões preparadas e sempre ao gosto do entrevistado, constituem o palco perfeito para a construção de um candidato, a partir do perfil anteriormente definido como de bonomia paternalista. A figura política, antes associada a uma a um espaço de fação, vai sendo, semana a semana, diluída , fazendo surgir no seu lugar uma figura afável e acima do espectro político. A linguagem desempenha neste jogo um papel essencial: a linguagem confrontacional e comicial a que os líderes políticos são forçados pelos tempos contemporâneos de comunicação - mesmo que contra a sua vontade - pode, neste contexto, dar lugar ao discurso ponderado e aturado, de palavras simples, que simulam a proximidade com o espetador. É campo favorável para a direita que explora o elemento cultural como elemento agregador - trata-se do homem que fala como quem está lá em casa e é o portador da circunspeção da nossa maneira de viver, afastada dos extremismos de linguagem e dos interesses dos partidos e dos atores políticos. É o “grande e bom pai” prestes a representar-nos. O apelo à ordem conservadora está presente, mas de forma light. A ordem é feita pela brandura das palavras, pelo apelo razão e na convicção que “o povo é sereno”. Isto é, que moderação e a serenidade são fortes e constantes elementos federadores.
A apresentação deste cenário conduz a uma questão óbvia: se esta estratégia resultou para Marcelo Rebelo de Sousa, por que parece dar mostras de menor eficácia com Marques Mendes, com resultados nas sondagens que, até este momento, se mostram desfavoráveis?
Há vários fatores que contrariam a trajetória de uma candidatura que muitos, há escassos meses atrás, não teriam dúvidas em definir como vencedora.
A primeira resulta da própria proximidade de estratégias.Marques Mendes é, aos olhos de todos, um candidato mais fraco do que Marcelo e essa evidência é amplificada pela proximidade das suas trajetórias de candidatura. É como pôr um anão ao lado de um gigante: o contexto da análise tende a sublinhar as desproporcionalidades. Marcelo é um político infinitamente mais inteligente e sofisticado do que Marques Mendes e isso condiciona os resultados, mesmo que a estratégia seja a mesma. Tudo o que em Marcelo parecia natural e impulsivo - ainda que cuidadosamente construído - em Marques Mendes surge como evidente manipulação. Todos os gestos parecem saídos de um mau ensaio do ator mais canastrão.
Recuperando uma metáfora de ilusionismo, é como ver dois mágicos diferentes a retirar um coelho de uma cartola. A maioria dos espetadores sabe que não há magia envolvida - mas enquanto o primeiro dos mágicos tem superiores capacidades de prestidigitação e granjeia admiração pela sua capacidade de nos iludir perante os nossos olhos, o segundo mostra o alçapão em que guarda guarda os felpudos bichinhos e retira qualquer fascínio pelo truque. Há muito pouco glamour em votar neste Marcelo da Wish.
Até as tentativas de lhe dar laivos de proveniência popular roçam o trágico-cómico. Retive um episódio particularmente desconcertante, embora não surpreendente, para quem há muito acompanha a forma como o ecossistema do entretenimento interage com a esfera informativa e política, para alargar o alcance de uma figura que se procura promover. Muito convenientemente, antes de deixar o seu espaço de comentário para apresentar a sua candidatura, Marques Mendes foi o convidado principal do programa da tarde da SIC, apresentado por Júlia Pinheiro. Entre outros motivos, faço questão de trazer este exemplo, porque sei, por experiência, que quem se interessa por ensaios e comentário político não tem por hábito ver este programa. Assim, de forma abnegada, trago aqui um dos meus fetiches mais obscuros - o de retirar grande prazer pontual do dramatismo de cordel destes programas - para vos dar conta do que vi. Como é sempre hábito nestes programas, o candidato vinha ali para revelar o seu lado “humano”. Se, no passado, Costa foi ao programa da Cristina arvorar o “rei dos tachos” que há em si e cozinhar uma cataplana de peixe, Marques Mendes estava ali para mostrar que já tinha sido jogador de futebol e que, pasme-se, tinha amigos de juventude como todos nós - o que constitui enorme surpresa, evidentemente, porque toda a gente sabe que os políticos são plantados nas traseiras da Assembleia da República e já saem da terra com fato vincado e pasta debaixo do braço. No entanto, tudo naquela entrevista, apesar de ser desenhado para promover o candidato, parecia saído de um sketch de humor de série B. Primeiro, descobrimos que, afinal, o jogador Marques Mendes não o foi na verdade. A fotografia da equipa e as memórias dos amigos, capturadas em entrevistas em vídeo, afinal respeitam só a um torneio inter-freguesias. Um evento casuístico, que aconteceu apenas uma vez. Pior: o jovem Luís deixou a equipa desfalcada, já que, apesar de terem passado à fase seguinte, faltou a esse jogo porque tinha outros afazeres - um grande companheiro com espírito de equipa, o nosso candidato. Para finalizar, é ainda revelada a posição a que jogava no campo, acompanhada da devida fotografia: Marques Mendes jogava como guarda-redes; o Marques Mendes, como guarda-redes… foi neste momento que eu comecei a ponderar se não estava a ver material retirado de um argumento de um quadro de revista no Maria Vitória. Afora a dimensão caricata, a imagem de Marques Mendes como jovem que veio de uma localidade periférica para vingar na política nacional também saiu ferida de morte. Filho de António Marques Mendes, figura influente do PSD, advogado com relevância regional e, então, Presidente da Câmara Municipal de Fafe, a imagem que perpassou do desfiar destas memórias foi provavelmente a verdadeira e a pior possível para o candidato: Marques Mendes sempre foi um protegido na sua vida política e profissional, usufruindo sempre de patrocínios de base familiar e partidária para atingir notoriedade.
Contudo, os desafios colocados à sua candidatura são bem mais profundos e estruturais. O principal problema enfrentado pelo ex-líder do PSD é a sua candidatura ser herdeira de uma estratégia agonizante à direita, enquanto enfrenta outros candidatos que, pelo contrário, corporizam estratégias em ascensão. A bonomia paternalista associada à noção de fiel de balança tende a ser uma boa estratégia para o alargamento da base eleitoral da direita, quando o sistema eleitoral segue uma distribuição normal, com uma concentração de votantes ao centro e com menor densidade na aba direita da distribuição. No entanto, esta estratégia é esvaziada, quando a mobilização à direita se torna mais relevante com um discurso confrontacional de base cultural. Nessa circunstância, a ideia de uma grande frente ponderada e humana construída pela sua persona televisiva perde poder. Ao ter de se medir eleitoralmente com dois candidatos de direita de perfil confrontacional - e não apenas com um, como inicialmente previsto - Marques Mendes surge enfranquecido, com a possibilidade de não conseguir sequer atingir a segunda volta.
Se isto constitui, ou não, o fim das possibilidades de triunfo de Marques Mendes é um veredito ainda precoce. A sua melhor chance é trazer para a sua candidatura o mesmo caminho comunicacional descaradamente utilizado pelo governo do PSD - usar elementos da agenda da extrema direita: imigração, segurança, corrupção - mas numa versão mitigada, com ares de maior equilíbrio, assegurando ser uma versão mais experiente e previsível do que um dos seus oponentes, e mais civilizado e cordial do que o outro. Se bem sucedido nesta estratégia, perante um candidato muito fraco provindo do centro-esquerda, Marques Mendes pode, pelo menos, aspirar a passar à segunda volta. No entanto, esta possibilidade é condicional numa boa campanha, num grande apoio da comunicação social - que terá - e na existência de erros ou do avolumar de escândalos em torno dos seus adversários diretos. Na ausência da convergência simultânea destes três fatores, Marques Mendes tem um caminho difícil. Ele é um candidato de direita de um tempo que passou. 2016 está muito, muito lá atrás e é tempo da nossa pequeno feiticeiro de Oz do comentário tomar consciência disso. We are not in Kansas anymore.
Gouveia e Melo
O inesperado surgimento da figura política de Gouveia e Melo é uma ilustração perfeita de como as grandes tendências internacionais influenciam a democracia exercida na esfera dos Estados soberanos, mas sempre de uma forma descontínua, aguardando com expetativa os pontos de oportunidade e fragilidade que lhes permitem ultrapassar os poderosos fatores de persistência institucional do xadrez político destes últimos.
Embora já tenha dedicado um post anterior a este tema (aqui), é oportuno recordar as características singulares da afirmação pública do senhor almirante. Gouveia e Melo foi nomeado na sequência da demissão de Francisco Ramos, então responsável pela estrutura de coordenação da vacinação contra a COVID-19, numa altura em que a comunicação social apertava o cerco mediático ao governo por casos esparsos e muito pontuais de irregularidades na implementação das prioridades definidas no processo. A demissão foi prontamente aceite por António Costa e, uma vez instalado no comando da operação, os casos polémicos desapareceram miraculosamente da comunicação social. António Costa e o Governo aceitaram de bom grado a paz podre que esta transição lhes garantiu e nunca se opuseram à evidente sede protagonismo evidenciada por Gouveia e Melo.
Trata-se de um traço clássico da gestão de António Costa, onde qualquer ganho tático de curto-prazo se sobrepõe aos efeitos adversos de longo-prazo que daí possam advir. Qualquer observador munido de um mínimo de lucidez política poderia ter antecipado os efeitos que daí proviriam: no espaço público, a narrativa de que as irregularidades com as vacinas tinham desaparecido quando a gestão passara da esfera civil para a esfera militar foi uma guloseima para o pensamento da direita sobre o Estado: ineficiente e desnecessário, a menos que falemos de forças de segurança ou do seu braço militar. Com a face desse processo a ter mais sede de protagonismo do que José Castelo Branco num dos seus dias mais reservados, o desfecho previsível foi o que se verificou: a leitura pública foi a de que apenas a gestão militar, liderada por um homem forte e íntegro, acima dos interesses políticos da anterior gestão, era capaz de gerir operações complexas feitas pelo Estado. O aparecimento de Gouveia e Melo segue, pois, os mesmos princípios de um fogo florestal: o clima seco e quente existia e era ditado por uma circunstância internacional favorável à emergência de pessoas com este perfil , mas a teve de existir uma fonte de ignição de base nacional para deflagrar, alguém que atirasse uma beata para o meio da floresta. Essa ação foi assegurada pela displicência e miopia do Governo de António Costa na gestão deste processo.
No entanto, agora que o mal-está feito, cumpre-nos caracterizar esta inesperada aparição para melhor a combater. A questão seminal, a qual é preciso responder de forma assertiva, sem as hesitações com que muitos a gostam de adornar, trata de saber se a candidatura de Gouveia e Melo é uma candidatura do espaço da direita, ou se, como alguns gostam de insinuar, se trata de uma candidatura de pendor centrista, menos intimidante do que alguma esquerda quer fazer crer. A resposta à questão se Gouveia e Melo é umcandidato de direita tem de ser um sim inequívoco. Para o caracterizar desta forma, basta apelarmos a duas das principais características da sua aparição pública: a primeira trata da mobilização de um imaginário supra-político, onde a independência face ao conflito de ideias é visto como um valor maior; a segunda trata de sublinhar sempre ideias como disciplina, ordem e respeito como eixos da sua orientação, como se esses elementos fossem condições suficientes para o desenvolvimento do país, deixando sempre implícito que ele é o fiel representante desses valores.
Claro que Gouveia e Melo tentará por todos os meios posicionar-se estritamente ao centro, como o fazem sempre aqueles que, colocando-se à direita, sabem que não tomar partido num mundo caracterizado por poderes conflituantes é ser defensor do status quo das classes dominantes. O almirante já o começou a fazer e, há-que sublinhar, de forma quase divertida, de tão óbvia. Numa entrevista que poderia bem ter sido gerada pelo Chat GPT, Gouveia Melo disse ao Expresso situar-se “politicamente entre o socialismo e a social-democracia”. Sabemos que o que quis dizer não foi aquilo que, na verdade, disse. Se fossemos literais, mesmo concedendo o largo espectro desses conceitos, estaríamos na presença de um perigoso esquerdista. O que Gouveia e Melo quis dizer ao seu povo foi que se posiciona politicamente entre o PS e o PSD, o que consubstancia numa manifestação trágico-cómica de se posicionar a partir de um desposicionamento radical - um centrismo sem fundo.
Como se procurou demonstrar na primeira secção deste texto, o ato de ocultar os interesses conflituantes de uma sociedade para as fazer convergir numa ideia de designo nacional, cuja unidade possa ser representada por um homem, é um dos traços mais definidores da estratégia da direita. Deve conceder-se, contudo, que Gouveia e Melo não é facilmente enquadrável nas categorias definidas. Por um lado, há nele um apelo ao ascetismo tecnocrático comum a outras figuras da direita na história portuguesa - afinal, a sua alegada eficiência e competência na capacidade de gestão da distribuição das vacinas contra a COVID-19 é parte central do seu surgimento. Todavia, não partilha o perfil professoral de outras figuras. A sua autoridade não provém de uma perceção de posse de conhecimento não partilhado por outros, mas antes da perceção de que a instituição militar é o último reduto de um conjunto de valores ameaçados, como a disciplina e a honra.
A condição militar como fonte de legitimidade do homem forte, o caudilhismo, não tem uma tradição forte em Portugal, ao contrário do caso espanhol e latino-americano. Teríamos de recuar à experiência efémera do Sidonismo, no muito específico contexto da 1ª República, para encontrar algo semelhante. No Estado Novo, os militares foram rapidamente relegados para um papel decorativo na orgânica do Estado, apenas mais um elemento (por vezes risível pela sua falta de talento e poder, como no caso de Américo Thomaz) na submissão das instituições corporativas ao fascismo catedrático de Salazar.
Apesar de romper com a trajetória comum da direita portuguesa, o sucesso aparente de uma potencial da candidatura Gouveia e Melo consegue ser entendido pela convergência de, pelo menos, três fatores: primeiro, por, como já foi mencionado, ser um eficaz híbrido entre o espírito tecnocrático e militar; depois, e não menos importante, por poder surgir como uma escolha mais moderada para aqueles que, na sua ausência, se sentiriam atraídos pela candidatura de André Ventura. Há uma fatia não negligenciável do eleitorado que se sente atraído pelo discurso securitário e de apelo à autoridade de Ventura, mas que manifesta desconforto com os aspetos mais rudes e exuberantes da sua atuação. Trata-se de um eleitorado conservador para quem a aparência de civilidade é fundamental, mesmo quando partilham intenções tão desprezíveis como as defendidas pelos discursos mais rasteiros da extrema-direita. Esse segmento eleitoral pode ver no Almirante uma opção mais apaziguadora das suas boas almas. Finalmente, os estudos de opinião mostram que Gouveia e Melo é capaz de apelar ao centro, abrangendo muito do eleitorado do PS e do PSD, em especial nas camadas mais idosas. A ausência da rejeição causada por André Ventura nesse eleitorado, a par da capacidade efetiva de se conseguir apresentar como um candidato moderado para muitos dos votantes do centro-esquerda, pode revelar-se decisivo para a sua candidatura.
Vale ainda a pena analisar uma das críticas mais interessantes à caracterização de Gouveia e Melo como um candidato de direita. Embora incorreta, a meu ver, a sua desconstrução não é linear. O essencial desta crítica trata de rejeitar que Gouveia e Melo se coloque no espaço da direita, preferindo vê-lo como uma nova manifestação do perfil presidencial de Ramalho Eanes. Gouveia e Melo seria só um Eanismo do século XXI. Logo, a plataforma política de Gouveia e Melo seria mais centrista e politicamente inofensiva do que setores da esquerda querem fazer crer. É fácil conceder que as premissa de base desta interpretação não é absurda: tal como Eanes, Gouveia e Melo é um militar de alta patente sem pensamento político previamente conhecido que foi catapultado para a uma candidatura presidencial com potencial vencedor por uma evolução abrupta e inesperada do processo histórico: Eanes como o símbolo do 25 de Novembro, Gouveia e Melo como o símbolo de uma operação bem sucedida da distribuição de vacinas, num momento de libertação de um momento coletivamente traumático como a pandemia.
Contudo, as semelhanças terminam aí. Existem, pelo menos, dois bons argumentos, que se interrelacionam, para contrapor este paralelo excessivo e espúrio. O primeiro é que Eanes, embora provindo de fora da política e órfão de um enquadramento ideológico definido, foi sempre politicamente subordinado. Isto é, Eanes dependeu sempre da legitimidade que lhe era emprestada pelos partidos políticos para existir politicamente. Foi assim em 1976, quando PS e PPD o apoiaram como representante da ordem de Novembro contra os alegados excessos do PREC. Eanes existia enquanto representação política delimitada por eventos e instituições que o ultrapassavam. E foi assim, também, em 1981, na sua reeilação, embora já num enquadramento distinto. Sem apoio da AD, que preferiu a figura saudosista de Soares Carneiro, mas com um apoio de um PS em colisão com Soares e do PCP, para quem Eanes se tornou um instrumento político interessante para encurralar Soares e fazer parte da frente anti-revanchista do candidato da AD. Isto é, Eanes surgia como um militar condicionado politicamente, com determinantes nacionais e que só podem ser entendidos no contexto da revolução portuguesa.
O segundo argumento é, de certo modo, ilustrado a partir do primeiro e trata de assinalar que candidaturas que tentam apresentar-se com um perfil apolítico demonstram grande porosidade aos eventos políticos que lhe são externos. Num linguajar mais comum, “tendem a surfar a onda” ou “a ir para onde sopra o vento”. Afinal, quem não tem uma bússola capitula sem grandes dificuldade ao pragmatismo mais extremo. Eanes foi sempre aquilo que as circunstâncias pediram dele: frentista anti-PREC em 76, reduto anti-revanchista em 81 e, mais tarde, um centro-esquerda moralmente aditivado pela sua imagem quando patrocinou a criação do PRD; isso não o impediu, anos mais tarde, de fazer parte da comissão de honra de Cavaco Silva nas suas candidaturas presidenciais, embora tenha sido também o homem cujo partido aprovou a moção de censura ao governo minoritário de Cavaco Silva, em 1987.
É precisamente esta adaptação, esta profunda dutilidade de candidatos deste perfil, que torna Gouveia e Melo tão perigoso na atual circunstância política. Isto é, se tivéssemos de escolher relações causais unidirecionais, num mundo que sabemos dialético, é muito mais o clima que torna Gouveia e Melo perigoso do que o seu contrário. Na era da ascensão militarista, da corrida aos armamentos, Gouveia e Melo sabe que tem uma posição privilegiada para fazer um discurso moral em torno desses temas: de tudo fazer uma distinção entre bem e mal e de se impor a partir da ardente mobilização pela bandeira; e, pelo caminho, insinuar que se deve afastar da esfera do debate público todos os que se oponham à ordem belicista, chamando-lhes “inimigos da democracia”.
A este respeito, a sua crónica publicada na última edição do Expresso merece atenção. Bem sei que se trata de uma peça com a qualidade, sofisticação de escrita e mobilização de pensamento de um aluno do ciclo preparatório a quem pediram um ensaio breve sobre a “importância da moderação, tolerância e respeito em democracia”. Contudo, não deixemos que o estilo tosco e pueril nos desvie da gravidade do que é dito - e pior, do que é insinuado.
Afora as referências sobre a sabedoria do povo em rejeitar o extremismo e a importância de um Presidente da República supra-partidário, Gouveia e Melo deixa dois elementos que devem causar apreensão a qualquer democrata. A primeira é a sua longa insistência de que as democracias têm o dever de se proteger de manifestações de intolerância e de pulsões antidemocráticas, teoricamente envolta -como não poderia deixar ser - em sabedoria convencional sobre Karl Popper. Ora, esta preocupação pode, à primeira vista, ser bem acolhida por qualquer democrata - afinal, quantos de nós não clamaram por uma intepretação mais restritiva de constituição no que respeita à proibição de organizações fascistas, nomeadamente no que respeita à existência do Chega? O problema é que a formulação de Gouveia e Melo é perigosamente ampla. Em nenhum momento o nosso caudilho de ocasião associa essa ameaça com a emergência dos fascismos. O que intuímos nas palavras do Almirante, muito pelo contrário, é um ensaio entre equivalência de extremos, caminho que, infelizmente, sabemos demasiado bem onde ameaça desembocar. Qualquer formação política à esquerda do Partido Socialista pode ser tomada como ameaça democrática. Afinal, não é a esquerda crítica da União Europeia e da NATO, pilares do nosso modo de vida e da nossa democracia? Será que isso é uma ameaça democrática a ser erradicada? Talvez - não me admiraria; e a forma como deixa essa interpretação sombriamente em aberto não me tranquiliza. Os democratas lúcidos, que não estão feridos pela ingenuidade, não devem esperar quietos para ver.
É também inquietante - e tremendamente irónico - o modo como Gouveia e Melo decidiu ilustrar a sua visão mais interventiva do mandato presidencial. Diz-nos Gouveia e Melo que a verdade é uma parte essencial do contrato democrático e que, por conseguinte, um Presidente da República não deve recear usar o seu poder de dissolução do parlamento sempre que considerar que o executivo está a incumprir com as promessas que foram feitas. De novo, não nos deve tranquilizar que um Presidente num regime semi-presidencialista, como o português, considere que a ação de dissolução do parlamento deve ser intensificada, forçando os governos a viverem com a constante guilhotina do homem forte sobre a sua governação. A ironia, por seu lado, advém da própria relação difícil de Gouveia e Melo com a verdade. Afinal, o mesmo homem que, há uns meses, quando questionado sobre se tinha aspirções a ser candidato presidencial, respondeu que, se tal acontecesse “deviam ir buscar uma corda para se enforcar”, é o mesmo que quer ser o escrutinador implacável da verdade e o representante da moral da pátria. Cómico se não fosse trágico. Está apresentado.
André Ventura
Uma caracterização exaustiva da figura política de André Ventura extrasava os limites deste artigo. Tratando-se da figura com mais destaque na política portuguesa dos últimos anos, Ventura tem sido objeto das mais amplas e variadas análises. Nesse sentido, o que aqui será dito é apenas uma análise parcelar, restrita aos elementos que mais diretamente respeitam à compreensão do seu perfil no mosaico presidencial da direita e com a tentativa consciente de não repisar o muito que tem sido escrito.
Uma das questões sobre as quais vale a pena refletir, em linha com o que já foi feito para outros candidatos, versa sobre saber como é possível enquadrar Ventura na trajetória histórica da direita portuguesa e nos atual panorama internacional. À imagem de Gouveia e Melo, Ventura não é um produto tradicional da direita portuguesa. Nem o ascetismo da cátedra nem o paternalismo político, que tudo alberga no seu regaço, o conseguem definir. Tentar encontrar uma arqueologia nacional para o perfil de Ventura traduz-se, na verdade, em desaguar numa forma de existência remota e mal-sucedida: a erupção episódica de um fascismo plebeu, onde os tiques apoteóticos e a virulência verbal foram tentados como constituição de uma direita de massas. Mas essa aproximação histórica, ainda que remotamente existente, é longínqua, muito imperfeita e não tem qualquer ligação evidente com a sua manifestação presente. Afinal, o nacional-sindicalismo seria formalmente proibido e quase integralmente assimilado logo nos primeiros anos do Estado Novo. Rolão Preto, o duce à portuguesa, abandonaria esse papel, transformar-se-ia num oposicionista e acabaria os seus dias como um democrata assimilado no Partido Popular Monárquico. Não existe qualquer persistência palpável desta manifestação de uma direita de massas que seja capaz de explicar a emergência da direita tentada por Ventura.
Com efeito, Ventura deve ser interpretado como um fenómeno de sobredeterminação da conjuntura política internacional sobre a paisagem política nacional - um produto direto da ascensão da extrema-direita no mundo. Assim, compreendê-lo passa, num primeiro momento, por mobilizar os instrumentos que nos permitem compreender essa ascensão internacional.
A literatura que se debruça sobre o crescimento contemporâneo da extrema-direita internacional tem procurado explicar este fenómeno político a partir da convergência de dois fatores. O primeiro é de ordem económica. A desigualdade, os momentos de crise e claustrofobia causada por um sistema político ausente de escolhas reais, com o neoliberalismo a servir de matriz ideológica a todos os partidos de poder, lançou no descrédito a democracia liberal. Com a esquerda a ser incapaz de enquadrar este sentimento anti-sistémico, as massas viraram-se para a extrema-direita por esta lhes oferecer um cenário mais tangível de colpaso de instituições tidas como incapazes de servir os seus interesses. A extrema-direita seria, pois, a nova roupagem necessária para as classes dominantes capturarem o voto popular, uma vez desfeito o jogo de aparências em que assenta a ; o segundo é de ordem cultural. A ascensão da extrema-direita seria, sobretudo, o reflexo de uma ampla resistência popular ao rápido aumento da diversidade cultural nas sociedades ocidentais, fruto do aumento dos fluxos migratórios. Assim, seriam o racismo e a xenofobia latentes a fazer ruir as democracias pela base, com a pulsão totalitária a chegar por meio do voto universal que essas democracias tinham consagrado.
Diferentes áreas políticas tendem a atribuir diferentes pesos relativos ao poder explicativo desses fatores. A esquerda crítica da capitulação dos partidos socialistas à terceira via (onde me incluo) tende a sublinhar o primeiro. Numa atitude com longa tradição na esquerda, o declínio da democracia adviria da base económica, pela forma como a acumulação cada vez mais desproporcional de recursos interrompeu um ciclo de resultados políticos capazes de manter a aparência da ordem liberal. Só uma ordem capitalista musculada, onde os mecanismos de controlo de massas implícitos se explicitam, passa a poder garantir resultados neste novo ciclo. Os políticos que representam as classes dominantes, antes imbuídos de um gravitas de quem representa toda a sociedade com a mais elevada civilidade, vão dando lugar a espantalhos que usam a democracia como elemento de afirmação e vão dando às elites um palco cada vez mais explícito. Esta tese encontra uma ilustração cabal em muito do que assistimos nos últimos dias: os donos da imprensa, antes sob a capa de que o seu envolvimento era estritamente na esfera de negócio, deixando aos jornais plena liberdade editorial, já não se coíbem de definir diretamente o alinhamento esperado da opinião de um jornal. Jeff Bezzos, dono da Amazon e do Washington Post, já fez saber que as colunas de opinião do seu jornal devem alinhar pela defesa da “liberdade económica”; os grandes capitalistas, antes ocultos sob os super packs que financiavam as candidaturas dos futuros presidentes norte-americanos, não se contentam hoje com isso: querem estar na sala oval, como Elon Musk já deixou claro.
Assim, para a esquerda crítica da terceira via, a atual ascensão da extrema-direita é resultado inexorável do neoliberalismo e de um sistema de opressão, nacional e internacional, este último sob a forma do imperialismo, que deixa finalmente cair a sua máscara.
Em contraponto, leituras mais centristas tendem a adotar o argumento da resistência cultural. O motivo para essa inclinação é intuitivo: na ausência de uma crítica sobre o neoliberalismo - categoria de análise cuja existência rejeitam sequer reconhecer - a decadência da democracia tem de advir de um elemento externo ao seu funcionamento. Esses elementos são a xenofobia e o racismo, encarados como uma forte manifestação anti-liberal, que corrói o contrato social em que a democracia assenta. Assim, a regressão democrática não tem de encontrar lugar na relação disfuncional entre democracia e capitalismo. São os cidadãos que não estão à altura do mais perfeito dos sistemas. Fina ironia dos que acusaram os socialistas de esgrimir o mesmo argumento altivo no final do século XX - mas adiante.
Embora me reveja na visão de que existe uma ligação causal entre o ciclo de acumulação neoliberal e a emergência da extrema-direita, reconheço que nenhuma das interpretações me satisfaz plenamente. A visão economicista tem, a meu ver, duas debilidades. A primeira é de procurar estabelecer uma relação demasiado linear entre as condições materiais e os seus efeitos. No esquema da maioria destas análises, o neoliberalismo é responsável por uma degradação das condições de vida e pelo aumento da desigualdade, o qual leva a uma desilusão das camadas populares com os partidos, a democracia e os orienta para as soluções anti-sistémicas que a extrema-direita promete. O problema deste esquema é sugerir, a meu ver, uma ligação demasiado direta entre resultados económicos e o seu reflexo político. Na verdade, a ascensão da extrema-direita surge como um fenómeno estrutural, que persiste para lá dos ciclos de contração e expansão das diferentes economias capitalistas. Este facto estilizado apela a que nos socorramos de determinantes de maior persistência.
A meu ver, o primeiro desses determinantes tem de olhar para como o neoliberalismo tem a capacidade de destruir horizontes coletivos, relegando para a marginalidade qualquer narrativa mobilizadora a partir da emancipação social: se a educação é um investimento individual capitalizado em melhores salários no futuro, por que deve alguém contribuir com os meus impostos para o salário futuro dos outros? Se o SNS se degrada e não cumpre o seu mandato de cuidado universal em muitas partes do país, para quê consagrar-lhe o dinheiro dos meus impostos? Se o mercado é um sistema que premeia o mérito e o esforço, por que devo aceitar soluções que assentam em políticas redistributivas? Isto é, a emergência da extrema-direita não é só a revolta popular no voto. É a revolta de quem já se viu despido de toda a sua noção de comunidade, coletivo e referência. Só massas desumanizadas nos garantem a emergência da extrema-direita representada por Ventura no espectro político e nesta eleição presidencial.
E isto conduz-nos à segunda crítica que tenho à interpretação preferencial do meu campo política: essa crítica tende a ser demasiado desresponsabilizadora dos votantes da extrema-direita. Com frequência, retratados como vítimas da sua condição, como se fossem agentes passivos, sem agência e livre-arbítrio. Não consigo subscrever esta visão. Haverá, certamente, entre muitos dos votantes da extrema-direita, um sentimento de total desnorte e desalento, mas isso não explica tudo. Desde logo, porque sempre existiu uma forte tradição reacionária enraizada nos setores populares, serviçais aos chefes, tementes da sua pequena propriedade e desconfiados de qualquer ação coletiva. Depois, existe uma grande massa votante com grande dificuldade em discernir politicamente campos políticos como esquerda e direita. Move-se apenas por aquilo que pressente ser a um discurso sistémico ou anti-sistémico. É preciso reconhecer que, para uma parte considerável destes votantes, a extrema-direita oferece um best of que a esquerda nunca poderá oferecer: por um lado, há um discurso contra o sistema. Com frequência, com linguagem vulgar e visando sobretudo os “políticos”; por outro lado, existe um uso exaustivo de discursos racistas, xenófobos e homofóbicos partilhados por muitos destes eleitores. Ora, estes eleitores são dificilmente recuperáveis, porque a extrema-direita lhes oferece aquilo que, na sua perspetiva, é a melhor combinação política possível. A esquerda nunca poderá apelar a estes eleitores, porque os seus valores não o permitem. Assim, parte da base eleitoral da extrema-direita tem de ser responsabilizada por aquilo que é: aliada do neo-fascismo. Uns fascistas, racistas, xenófobos e homofóbicos por convicção; outros, para quem isso não importa, desde que possam sinalizar o seu descontentamento. Os segundos não são melhores do que os primeiros e é preciso que isso seja dito explicitamente: ser um racista convicto ou votar num partido racista sem que isso o ofenda moralmente é exatamente a mesma coisa. Com esta parte do eleitorado, a perspetiva da vitimização é desadequada; e estou convencido que o rumo de ostracização nas redes sociais e familiares pode mesmo ser um caminho estratégico profícuo - mas deixemos isso para o campo da discussão das soluções.
E onde fica o campo aspiracional? Será que os eleitores de Ventura votam mesmo nele aspirando a uma vida melhor? É flagrante Ventura é um candidato em que o elemento de resistência cultural à ameaça externa e face ao outro tem um peso relativo muito superior face ao elemento aspiracional. Para o eleitor-tipo de Ventura, não existe uma ligação linear entre o seu voto e a expetativa de viver melhor. Parte fundamental dos votantes de Ventura têm uma abordagem punitiva do seu voto: punir sem clemência os criminosos pelos seus crimes, punir os políticos por roubarem, viverem à nossa custa e nada fazerem; e punir os estrangeiros por não falarem como nós, por não adorarem a cruz como nós, por terem uma cor diferente de nós. O eleitor de Ventura quer sobretudo o regresso a uma pureza portuguesa mitificada e expulsar do espaço público e da sua vivência quotidiana elementos que o agridem. O elemento aspiracional existe, mas é residual, uma segunda derivada do raciocínio eleitoral e opera por canais causais difusos. Por regra, o eleitor de Ventura tende a considerar que o restaurar da moralidade perdida - “se os políticos deixarem de roubar” - ou o afastamento daqueles que vê como ilegítimos no seu espaço - “mandar esses imigrantes para a terra deles” - tem efeitos positivos na sua condição económica e na do país. No entanto, a punição da posição relativa do outro é sempre o fulcro da sua mobilização política.
Ainda que sendo sobretudo o reflexo de uma grande vaga política internacional, vale a pena referir que existem - como sempre - especificidades nacionais que são necessárias para entender a emergência da direita que Ventura representa no mosaico desta eleição presidencial. É oportuno referir duas dessas especificidades.
A primeira respeita à existência de uma grande divergência entre o alinhamento político das bases eleitorais da direita e do seu reflexo partidário antes da afirmação política do partido de Ventura. Em virtude do seu percurso histórico singular, Portugal seria talvez o país onde existia um maior desfasamento entre a mundividência dos votantes da direita e o discurso dos seus partidos. As bases eleitorais da direita (sobretudo nas áreas urbanas e suburbanas) sempre mostraram uma auto-referenciação mais radical do que os seus partidos, cujo trauma histórico os impediu, por muitas décadas, de ter um discurso tão abertamente de direita como as suas bases desajariam. Mesmo quando, já na proximidade da Troika, a direita consentiu ter um discurso mais musculado, abandonando de vez as veleidades centristas, havia ainda espaço a grande contenção. Embora se possa argumentar que este desfasamento era transversal a outros países, é difícil encontrar outro caso onde isto se tenha observado tão prolongadamente como em Portugal. A razão é evidente: importa lembrar, ainda que muitos queiram inverter a história, que toda a direita portuguesa - toda - foi assimilada pelo Estado Novo. Essa pesadíssima herança fez sempre com que PSD e CDS tivessem de dar sinais claros da rejeição do fascismo e de congratulação com a revolução - mesmo que para amplos setores desse partido isso fosse feito a muito contragosto. Assim, o Chega e Ventura conseguem emergir a partir de um discurso desassombradamente à direita (e boçal) que esses partidos - por imperativos de pedigree ou de precaução histórica - se tinham negado a fazer. A área partidária da direita tinha muitos eleitores que lhe serviam de alicerce a contragosto, sempre esperando uma manifestação mais radical da sua linguagem e da sua prática do que aquela que obtinham. Foi essa frustração reiterada que Ventura também soube explorar.
O segundo elemento, a meu ver tão relevante quanto pouco explorado, prende-se com a forma como o Chega e André Ventura conseguiram voltar a erguer binómios políticos mobilizadores em territórios em que a implantação eleitoral da esquerda persistia, mas onde a infraestrutura económica e de relações de produção que as sustentava tinham desaparecido há muito. Refiro-me, em concreto, à capacidade de boa expressão eleitoral do Chega em regiões como o Alentejo e o Ribatejo. A grande tradição e implantação territorial da esquerda nestes territórios foi fundada num longo trabalho efetuado pela esquerda na resistência ao fascismo nesses territórios e no trabalho político no pós-25 de Abril, sobretudo através da Reforma Agrária e das conquistas do poder local democrático, no quase tudo o que de básico havia por fazer nesses territórios, das redes de saneamento básico às escolas, da eletrificação às estradas. Uma parte fundamental dessa implantação resulta, pois, de ações concretas de apoio e organização de trabalhadores rurais no pré e pós-25 de Abril. No entanto, tão importante como esse trabalho concreto, foi a forma como a partir dele se conseguiu extrair um enunciado abstrato, capaz de sintetizar um sujeito político que representava e excedia cada uma dessas lutas concretas: a figura do assalariado rural como grande agente de resistência ao fascismo e de combate no Portugal democrático. Essa imagem aglutinadora serviu de auto-identificação para vastas camadas populares e persistiu durante gerações. No entanto, há limites ao quanto se pode distender uma referenciação política para lá da deterioração das relações de produção que as sustentam - e foi exatamente isso que sucedeu ao longo das últimas décadas.
Com a diminuição do trabalho assalariado na agricultura na maioria dessas regiões, essas relações de produção deixaram de ser estruturantes. Não significa que o trabalho assalariado tenha desaparecido dessas regiões ou que a propriedade agrícola esteja hoje mais equitativamente distribuída do que no passado: significa somente que já não é possível criar a mobilização política a partir do imaginário da resistência do trabalhador rural aos proprietários fundiários que alimentou essa representação durante tantos anos. Existem ainda fatores de amplificação deste efeito que tendem a aumentar os efeitos de descontinuidade abrupta da representação, nomeadamente a componente demográfica. Importa notar que o voto é não raras vezes passado por referenciação familiar e afetiva às novas gerações, sobretudo quando estas apresentam, em média, um menor envolvimento político do que os seus ascendentes. Ora, encontramo-nos num momento em que o desaparecimento físico da maioria daqueles que estiveram envolvidos na luta antifascista e nas ações pós-revolução é uma realidade e isso tende a acelerar um padrão de declínio eleitoral da esquerda que necessita desse mecanismo. Vertendo isto em termos práticos, o que procuro dizer é que mesmo as novas gerações que perpetuavam um padrão de voto por pressão familiar tendem a abandonar esse padrão, à medida que os seus pais e avós deixam de estar fisicamente presentes para exercer essa influência. Isto é, a finitude física das gerações que consubstanciavam essas relações de produção tem um impacto mais do que proporcional nos resultados eleitorais, aumentando a vulnerabilidade da mudança de voto dessas novas gerações para a extrema-direita.
A decadência do binómio proprietário/assalariado rural deu lugar a duas novas representações agregadoras, ambas muito suscetíveis de serem fator de mobilização por parte da extrema-direita. Estes binómios sobrepõem-se em partes significativas dessas regiões, mas são heterogéneos entre si.
O primeiro é o binómio centro/ultra-periferia. Muitas das regiões descritas, antes espaços económicos predominantemente rurais ou com pequena indústria local, são hoje apenas uma camada adicional atraída pela força centrípeta exercida por Lisboa. Antes povoados por pessoas com estreita ligação à vida recreativa e cultural desses espaços, muitos destes territórios são hoje socialmente desenlaçados, com partes significativas da população sem afinidade ou sentimentos de pertença ao local onde se encontram. Tal fenómeno, a par do distanciamento do centro a que se comparam, favorece a ideia de um fosso de oportunidades de trabalho e lazer que cria sentimento de exclusão e ressentimento. Embora saibamos que muitos destes movimentos se devem à crise da habitação sentida na última década - que tem em muitas das políticas apoiadas pela extrema-direita uma parte fundamental das suas causas, desde os vistos Gold até à falta de regulação na aquisição de imóveis por cidadãos estrangeiros para fins de investimento de carteira - estes fatores mais profundos tendem a não ser tangíveis na vivência concreta das população e na forma como constroem a sua representação político.
O binómio centro/ultra-periferia transforma-se, pois, numa forma de ressentimento entre um espaço urbano, onde vivem e se deslocam as elites, e um espaço cada vez mais periférico, para onde são empurrados uma maioria que não acede a esses espaços. É neste caldo que medra o nós e o eles - o imaginário da elite a circular nos gabinetes e o povo do Portugal esquecido. Neste esquema não há classe, porque esse espaço de representação é já desconhecido. O que existe é uma revolta contra uma coisa informe. Esse pólo de oposição tem largo espectro e engloba uma vasto conjunto de grupos vistos como movendo-se nesse Portugal vedado, a que esta maioria aspira mas não pode pertencer. O objeto dessa raiva é centrada sobretudo nos políticos, mas aí podem também estar também jornalistas, escritores, artistas. Raramente estão os patrões per se - esses têm cada vez menos um rosto e não figuram nos diretos exaustivos do Alerta CM ouvido aos berros na mesa do café. O Portugal esquecido está contra essa grande massa da elite urbana - mesmo essa elite possa ser um jornalista que recebe pouco mais do que o salário mínimo. Isto é, embora a pulsão para a revolta possa estar correta, sucede-lhe um completo desnorte de classe que, a par da permeabilidade aos slogans racistas e de apelo à ordem, tendem a atirar as novas gerações destes territórios para os braços da extrema-direita.
A segunda forte oposição referencial trata-se do binómio valores urbanos/costumes rurais. Este fator de representação político é gerada a partir de um sentimento de ameaça crescente dos costumes rurais perpetrada por aqueles que se movem em espaços urbanos e tendem a rejeitar a legitimidade da sua existência, apelando a valores básicos de dignidade e oposição ao sofrimento animal. O caso mais paradigmático deste efeito respeita à tauromaquia, cujo impacto na construção de uma hegemonia da extrema-direita em muitos territórios não pode ser subvalorizado.
Repare-se que, durante muitos anos, o uso deste binómio era inoperante. Na verdade, colocá-lo desta forma pareceria impensável. Por um lado, partidos de direita e de esquerda tinham os seus respetivos discursos para áreas urbanos e rurais do país. A ruralidade representada pela direita, da coligação discursiva entre a pequena propriedade a Norte e a defesa do grande latifúndio a Sul, em nada se confundia com a ruralidade representada pela esquerda, dirigida ao assalariado rural dos campos do Sul e, em menor medida, a uma agricultura de base mais familiar que procurou enquadrar numa mundividência de esquerda, cujos representação se faz ainda hoje sentir na CNA. Isto é, por projetarem bases sociais tão distintas, a possibilidade de conceptualizar um projeto político de identificação e mobilização com base numa ideia de homogeneidade do campo rural, por oposição a um campo urbano, não era sequer uma possibilidade política.
De igual modo, questões de costumes rurais, como a tauromaquia, não representavam fatores de divisão política. Na verdade, e apesar de ser um objeto pouco estudado, as festas de cariz popular em torno dos motivos tauromáquicos foram sempre peculiares momentos de trégua de classe, mesmo quando as tensões pós-25 de Abril se encontravam ainda muito vivas. A crispação política entre a base política de assalariados rurais e operários votantes do PCP e de proprietários agrícolas que votavam CDS davam, com frequência, lugar a momentos de coabitação - quando não mesmo de convivência. Refira-se que esses elementos agregadores eram tão fortes que passaram mesmo pela assimilação desassombrada de figuras muito próximas do Estado Novo. Veja-se, para fins de ilustração, que, por ocasião da morte, em 1978, de José Van Zeller Palha, amigo próximo de Salazar e um dos esteios da doutrina ruralista do regime, a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira não se coibiu de o homenagear como fundador da festa do Colete Encarnado, mesmo sendo então presidida por uma coligação encabeçada pelo PCP.
Ora, este cenário mudou dramaticamente ao longo das últimas duas décadas. Em parte, porque, como já se enfatizou, a estrutura de relações de produção onde assentava o imaginário político da esquerda sobre o mundo rural ruiu. Por outro lado, porque uma parte significativa da esquerda começou a adotar os temas do bem-estar animal no seu discurso, o que desencadeou um conflito com parte desses costumes rurais. Ambos os efeitos - o fim de um discurso sobre a ruralidade de cunho ideológico e a perceção de que a esquerda - ou parte significativa dela - é hostil ou tem reticências face a algumas práticas recreativas da ruralidade, favoreceram a constituição de uma representação do mundo rural como espaço uno e ameaçado, tendo a esquerda urbana como principal agente dessa ameaça. Como é comum na história da política e da história social, a noção de ameaça por um inimigo externo tende a robustecer traços identitários a partir do elemento que se considera sob ataque. Neste contexto, é exatamente o que tem sucedido, com muitas destas regiões a reforçarem a sua identidade a partir desses elementos, sobretudo em torno da tauromaquia.
Essa operação de constituição de novas identidades políticas tende a ser particularmente eficaz junto das novas gerações. Afinal, não se revêem nem têm memória viva de um elemento político agregador em torno do assalariado rural; são cada vez menos expostos a uma memória coletiva dessa representação, à medida que o desaparecimento das velhas gerações se vai materializando; sentem, de forma particularmente aguda, a assimetria de oportunidades entre a ultra-periferia onde se colocam; e são expostos a um reforço identitário a partir dessa ameaça externa à qual se querem opor. Quem quiser perceber a forma como o CH e André Ventura conseguiram ser a primeira força política em concelhos como Benavente, onde o PCP nunca perdeu uma eleição autárquica desde o 25 de Abril, precisa de olhar para este esquema causal. Onde antes existiu um choque de classe refletido no padrão eleitoral, com o voto do agrário a ser simétrico ao do assalariado rural, existe hoje um bloco em afirmação, onde a classe pouco conta. Os filhos e netos dos agrários partilham hoje o seu voto com os filhos e netos dos assalariados rurais: os blocos de classe são substituídos por um bloco uno de resistência cultural de base rural do qual a extrema-direita se regozija em ser veículo político.
Muito do que aqui se disse sobre a ascensão regional da extrema-direita em áreas do interior e/ou com elevado peso rural pode ser generalizável, com algumas modificações e fatores adicionais, para concelhos da antiga cintura industrial de Lisboa, bem como para muitos dos concelhos do distrito de Setúbal. No entanto, esse seria um exercício mais longo e complexo, que não tem lugar num artigo que já vai longo.
Importante é, no entanto, que a compreensão do voto na extrema-direita representada por Ventura não ignore os fatores que explicam a sua maior presença em territórios de tradição à esquerda. Há uma linha de análise, influente, em torno deste tema, que tende a a subvalorizar - quando não a negar - este padrão eleitoral. Como argumento, apontam estudos eleitorais que demonstram uma fraca transferência de voto entre o PCP e o partido de André Ventura, o que, na visão de alguns cientistas políticos e comentadores, sugere a rejeição de uma substituição direta de um padrão eleitoral por outro. No entanto, estes dados são muito menos conclusivos do que quem os apresenta pode fazer querer. Por uma multiplicidade de fatores: em primeiro lugar, porque parte deste processo de erosão de relações de produção que favoreciam a esquerda e o aparecimento de novos blocos de auto-representação política que favorecem a extrema-direita operam de forma intergeracional - isto é, dentro da mesma classe, mas em gerações diferentes - e tal efeito não é capturado por esses estudos; de igual modo, esses estudos tendem a ter amostras que, para serem significativas, só podem ser lidas à escala nacional. Ora, pelos que se enunciaram acima, é de prever que essas transferências apresentem grande contingência regional; e, por fim, porque esses estudos não apreciam a forma como a erosão das relações de produção que tinham garantido uma hegemonia eleitoral de esquerda já tinha conduzido à abstenção grande maioria da população dessas regiões - com taxas de abstenção quase sempre superiores à média nacional. Por conseguinte, não conseguem capturar a arqueologia de voto dos numerosos eleitores que a extrema-direita retirou da abstenção, muitos dos quais seriam certamente votantes à esquerda. É inequívoco que, ao contrário do que uma certa direita gosta de tentar estabelecer, não há contacto ideológico entre os extremos - e a transferência de quadros políticos ocorre entre a direita e a extrema-direita, amiúde por motivos oportunistas, como a conquista de melhores lugares. No entanto, insistir na total impermeabilização das camadas populares que foram o sustentáculo de uma tradição de esquerda nestes territórios face à extrema-direita é uma deriva negacionista do que está acontecer, cujos efeitos são apenas a persistência de uma deficiência analítica sobre este processo.
Como a secção sobre os determinantes da direita representada por Ventura foi longa, é oportuno fazer um parágrafo de síntese o que de essencial se pretendeu dizer antes de se avançar para a secção seguinte.
Ventura deve ser entendido , em primeiro lugar, como uma manifestação nacional de uma vaga internacional - isto é, Ventura é a personificação da capacidade de fenómenos políticos internacionais sobredeterminarem os espaços nacionais. Ventura não criou nada de novo nem trabalhou sobre uma tradição evidente - é, fundamentalmente, um produto de importação. No entanto, tal não significa que não existam elementos idiossincráticos, de base nacional, responsáveis por tornar o espectro político vulnerável a abrir brechas ao seu desenvolvimento : elementos onde se incluem o desalinhamento da representação partidária da direita face às suas bases, o desagregar de relações de produção favoráveis à esquerda em muitos territórios e sentimentos de xenofobia e racismo enraizados e latentes, em busca de afirmação eleitoral. Por último, esta é uma direita onde o elemento de resistência cultural se sobrepõe claramente ao elemento aspiracional, e onde predomina um voto punitivo, o que coloca enormes desafios à reconquista da sua base eleitoral. A construção de um discurso e de um programa que, à esquerda, volte a convencer a população de que “pode ter uma vida melhor” não constitui uma condição suficiente para recuperar a maioria deste eleitorado.
Há uma última ressalva que se impõe, mais diretamente relacionada com o contexto particular desta eleição presidencial. Se levar a sua candidatura às urnas, Ventura terá neste embate eleitoral o seu maior e mais arriscado desafio político. À imagem de outros candidatos, Ventura não contava ter de partilhar esta eleição com Gouveia e Melo. Como já se abordou na seção que se dedicou a esse candidato, Ventura é talvez o que mais deve temer o almirante na contenda eleitoral de janeiro. Todo o universo de símbolos em que Ventura gosta de assentar o seu ecossistema propagandístico - ordem, moral, autoridade - estão presentes em Gouveia e Melo de forma matizada, sem o linguajar mais rasca e explícito de que o Presidente do Chega se gosta de socorrer. Ainda que Ventura possa vir a ser -e será - mais enfático em temas como a imigração e a segurança - persistem dúvidas se isso será suficiente para manter a sua trajetória de crescimento. Há mesmo um voto que, sendo profundamente reacionário, não deixa de valorizar a aparência dos brandos costumes. De resto, a este receio não será alheio a manobra que Ventura ensaiou recentemente, quando, perante a probabilidade de existirem eleições legislativas antecipadas, sugeriu retirar a candidatura presidencial para se focar na sua eleição para o parlamento. Com a putativa data dessas eleições apontada para Maio e com as presidenciais a decorrerem apenas em Janeiro do ano seguinte, é evidente que as eleições legislativas se tratam apenas de um ensejo improvisado para evitar um momento que antevê como adverso. O “nosso homem forte” está com medo.
Mariana Leitão
Mariana Leitão, a candidata apoiada pela Iniciativa Liberal, surge, neste momento do debate, como uma candidatura com espaço residual no campo da direita. Sem perfil público prévio e com uma candidatura enfeudada a um pequeno partido, não lhe prevê capacidade de ombrear com os demais candidatos do seu espaço político. Com efeito, não se reservará tanta atenção a esta candidata como aos anteriores. No entanto, há um conjunto de apontamentos sobre esta candidatura que merecem destaque.
A primeira dessas notas é que, reconhecendo a posição de manifesta desvantagem de que parte esta candidata, esta tem à sua disposição traços do seu perfil pessoal que se podem revelar eficazes em campanha. Note-se que todos os candidatos da direita revistos até agora têm em comum uma característica: são homens. Um deles tem um discurso abertamente misógino, enquanto os demais oscilam entre a omissão das questões relacionadas com a identidade de género e um discurso paternalista sobre o papel da mulher - afinal, digam lá que Marques Mendes não exala aquele aroma de macho conservador, convicto que celebrar o Dia da mulher é oferecer flores e esperar o jantar à hora certa na mesa? Tendo esta paleta de adversários, Mariana Leitão pode explorar a sua condição de mulher e jovem como trunfo eleitoral. Não é claro até onde essa estratégia a poderá levar numa eleição tão disputada, mas uma mensagem centrada na emancipação feminina e na igualdade de género pode granjear-lhe sucesso moderado.
Quem conhece o programa da IL e a sua atuação política sabe que o seu ideário não poderia ser mais contrário à causa feminista. A sua oposição epidérmica a leis laborais favoráveis aos trabalhadores é um obstáculo à harmonia entre a vida laboral e familiar, cuja ausência de salvaguarda afeta as mulheres de forma mais aguda; de igual modo, a sua oposição ao avanço da ação de provisão universal do Estado nos setores do cuidado (nomeadamente, no cuidado à infância e à velhice) atinge assimetricamente as mulheres, sobre as quais tendem a recair esses encargos, com prejuízo de iguais oportunidades na vida profissional e familiar. Finalmente, a IL e os setores que a sustentam estão pejados de um ultra-conservadorismo envergonhado, que procura utilizar uma ideia de maior liberalismo nos costumes, nomeadamente na lei do aborto - para disputar setores progressistas para os quais esses temas são centrais - mas, na verdade, estará diposta a abrir mão dessas causas se o clima político assim o exigir, sobretudo num contexto de ascensão neo-conservadora como aquele a que assistimos. O seu pretenso feminismo é, sob qualquer prisma, performativo e demagógico. Todavia, tudo o que aqui se referiu só seria um obstáculo à exploração de uma mensagem focada na emancipação feminina se esta informação fosse partilhada pelo eleitorado a quem se dirige. No entanto, nós sabemos - e Mariana Leitão também sabe - que esse eleitorado potencial não detém esse grau de esclarecimento. Com efeito, um discurso focado na sua condição de única mulher candidata nestas eleições pode ter acolhimento junto de um franja de eleitorado feminino jovem, pouco politizado e propenso a ser enleado nas promessas de modernidade que a IL tão bem já mostrou saber vender.
No que respeita à caracterização política desta candidatura, não existe independência entre a análise da candidata e do partido que a apoia. Caracterizar Mariana Leitão nesta eleição é caracterizar a IL. Em certa medida, algo semelhante ao que ocorre com Ventura, mas sob um efeito de espelho: se Ventura é maior do que o partido - ou, com mais rigor, Ventura é o partido - Mariana Leitão não tem existência autónoma: só existe porque a IL a mandatou como candidata. Com efeito, caracterizar esta candidatura é semelhante a caracterizar a IL.
Seguindo a matriz de análise aplicada no decurso deste artigo, Mariana Leitão (e a IL) operam a transferência de classe necessária à penetração eleitoral do seu projeto nas massas populares através, sobretudo, do elemento aspiracional. O eleitor que vota IL vota porque está convencido de que isso aumentará o seu nível de bem-estar económico individual. O apelo a elementos culturais é inexistente ou residual, porque tudo o que excede a estrita esfera do indivíduo tende a ser alheio a este eleitorado. Ao contrário do eleitorado de Ventura, não são particularmente sensíveis às versões épicas da história de Portugal ou a um discurso anti-multiculturalismo. Tudo converge para uma dimensão simples e palpável: como é que o meu voto se refletirá na minha conta bancária. Claro que, no plano da captura da imaginação coletiva, as coisas nunca são apresentadas com esta crueza. Mesmo os votantes da IL precisam de uma narrativa que adicione nobreza ao seu gesto e o despoje de um raciocínio tão linear e ensimesmado.
A este respeito a IL apresenta um cocktail tão simples quanto eleitoral eficaz: ultra-simplicidade no discurso e no mecanismo causal da sua política - afinal, quase toda a narrativa é sustentada num único instrumento - e uma perfeita e conveniente convergência entre preferências individuais e um horizonte de melhoria económica e social coletiva, elemento que serve de perdão à consciência daqueles que, se movendo por impulsos estritamente egoístas, não gostam de o reconhecer socialmente - quando não para si mesmos.
O instrumento único são os impostos, uma omnipresente fixação com a carga fiscal. A diminuição de impostos, sobre o rendimento de trabalho e capital, desencadeia, nessa narrativa, dois mecanismos que se reforçam: um primeiro, de satisfação pessoal - o eleitor deve esperar ver mais dinheiro na sua conta ao final do mês; Mas também o país fica melhor! Com impostos mais baixos, consegue-se reter mais mão-de-obra qualificada no país e atrair investimento internacional, alavancando a convergência da economia portuguesa rumo à modernidade. É um truque de mestre, capaz de transformar qualquer sociopata focado no seu umbigo num abnegado construtor do desenvolvimento da economia portuguesa.
Note-se como o esquema causal é linear, básico e, por conseguinte, totalmente ineficaz para problematizar uma realidade complexa, apenas a distorcendo em favor de uma dada conclusão politicamente enviesada. No entanto, serve também aí um importante propósito político. Exerce algum magnetismo junto de setores apolitizados e com pendor mais analítico no seu raciocínio. Num discurso político que, tradicionalmente, tende a preferir o slogan e a adesão emocional a valores, a IL introduz um esquema de raciocínio simples. Os seus apoiantes sentem-se inteligentes quando o explicam aos outros. Eles sabem. Eles têm literacia financeira e económica. É o momento de glória dos intelectuais de panfleto. Junte-se a este caldo faculdades de economia e gestão cuja síntese enviesada de conhecimento e comunicação institucional facilita uma linha de raciocínio igualmente primária, a par de empresas de consultoria que amplificam este evangelho por múltiplas esferas da sociedade, e podemos descodificar a forma como a direita que a IL representa consegue alcançar o seu sucesso de nicho: uma pitada de aspiração a subir na escada social, um toque de teoria social de microondas e um clima público e institucional favorável, sem escrutínio.
Existe sempre pouca capacidade de responder aos contra-argumentos desse exercício: e se os impostos sobre o capital não forem um determinantes relevante da dinâmica do investimento nacional e internacional em setores estratégicos? E se a diminuição marginal dos impostos sobre o trabalho for ineficaz para colmatar o desenvolvimento desigual e combinado existente na zona euro nos últimos 25 anos? O que acontece às prestações sociais financiadas por esses impostos? E à saúde, e à educação?
É nesta altura que o eleitor da IL invoca pensamento mágico: os ganhos de eficiência de expor todos estes setores ao mercado e o aumento de produtividade gerado pelo novo investimento criado pela diminuição dos impostos compensará toda essa perda de receita. Cortaremos impostos mas o Estado terá ainda mais dinheiro. Magia.
É uma direita primária, intelectualmente rasteira e ultra-panfletária. No entanto, não deve ser subvalorizada. Há muitos setores - sobretudo jovens - muitos provindos de classes populares e situados, após o primeiro emprego, na camada média da distribuição de rendimento, convencidos de que este discurso satisfaz os seus interesses. Nunca se perguntam, naturalmente, quanto do seu percurso se deveu à escola e à universidade públicas onde a maioria estudou ou ao SNS onde muitos nasceram. Na verdade, muitos continuam a ser, mesmo hoje, beneficiários líquidos do Estado Social, se fizerem devidamente as contas. No entanto, tudo isso surge demasiado difuso na sua pequena mundividência, fazendo deles presas fáceis para esta direita.
Em suma, o realinhamento da auto-representação de classe pela via aspiracional é poderosa e tem na IL a sua mais forte manifestação. Com efeito, mesmo que nesta eleição presidencial a sua candidata não tenha um grande ascendente no mosaico da sua área política, não deve ser desconsiderada. Até porque será mais uma peça a adicionar temas ao debate por uma perspetiva de direita, introduzindo uma dificuldade adicional para a esquerda marcar a sua agenda.
Nota final
Ao longo deste (demasiado) extenso artigo procurou-se gizar um esquema teórico adequado a analisar a direita na próxima eleição presidencial. Verificou-se como a direita é hoje um ponto de convergência de estratégias de afirmação mediática em declínio e ascensão, mas também que é possível extrair elementos estruturais no discurso destes candidatos que são referenciais da direita em qualquer momento histórico. No próximo fascículo, trataremos de entender como este mosaico da direita vai influenciar os temas dominantes e qual a resposta necessária por parte da esquerda.
Já esperava com interesse este “post” que bem merece reflexão. Sugiro-lhe só, quanto à primeira parte, conversar-se sobre o que me parece ser relativamente novo em termos da perspetiva gramsciana da hegemonia. Até agora, víamo-la em termos de ideologia e de intrusão no senso comum. Continua a ser, mas julgo que há agora um aspeto ainda mais perigoso, o do domínio das mentalidades, coisa mais funda do que a ideologia. Falo, por exemplo, do individualismo egoista, da competição, da tendência para a amoralidade, o narcisismo, o pessimismo derrotista (não há alternativa!), etc. O neoliberalismo tem uma componente cultural-ideológica, com hegemonia à Gramsci, mas essa ideologia traz por arrastamento comportamentos e valores que já são do domínio ético. Adivinho que está de acordo… 😉
Muito bem, Diogo. Já li (ainda que em diagonal) o 2º fascículo. Vou agora analisar, numa leitura mais exigente. Sei que (ou penso) que ainda não publicaste o 1º fascículo no nosso Grupo WhatsApp "PAÍS SEM AMOS", que eu criei com sugestão do Zé Vítor Malheiros, de que fazes parte. A propósito, fica a notícia (ainda sem confirmação absoluta da data) da realização da nossa 1ª Tertúlia na primeira (ou segunda) semana de Abril, na Associação de Jornalista e Homens de Letras do Porto (ou 4 ou 11). Queres partilhar nesse Grupo este 2º fascículo? Um forte abraço para ti. E continua....