As causas estruturais das insuficiências do Estado Social e do impasse político presente
O espectro da adoção irrefletida de um regime de acumulação trabalho-intensivo
Os últimos dias têm sido marcados por uma sucessão de notícias a dar conta das múltiplas situações de insuficiências graves nos serviços públicos. Estas incluem os encerramentos e constrangimentos no SNS, em especial nas urgências obstétricas, mas também a dificuldade de atrair professores em número suficiente para a escola pública no próximo ano letivo, com alterações legislativas cada vez mais desesperadas para tentar reajustar de forma célere o número de profissionais ao número de alunos. Contudo, os problemas não se restringem às áreas mais comummente associadas ao Estado Social. Estendem-se ainda a várias áreas do complexo administrativo do Estado. O caso mais saliente é o das longas e desesperantes filas à porta da AIMA, a agência pública responsável pela regularização dos documentos dos estrangeiros que desejam viver e trabalhar em Portugal.
Na era da comunicação voraz, dos diretos noticiosos ininterruptos, estes temas são sempre tratados com o imediatismo e superficialidade que esse modelo de comunicação inspira: faz-se um direto, denuncia-se a situação, buscam-se rapidamente culpados, chama-se comentadores a estúdio sempre lestos a dar opiniões de fundamento dúbio e cuja inclinação tende a servir a narrativa momentânea da sua inclinação política. O esclarecimento vai naufragar nesse triângulo das bermudas do burburinho mediático nacional, cujos vértices são as acusações entre os responsáveis governamentais presentes, os responsáveis governamentais passados e os diretores ou gestores públicos responsáveis pelas instituições sob escrutínio. No fim, passa-se à próxima notícia sem que nada tenha sido verdadeiramente esclarecido.
Superar este estado de coisas é um imperativo para todos quantos se importam com os verdadeiros mecanismos de causalidade dos processos sociais, mas também os que não consentem ser joguetes na mão dos editores que controlam a intensidade mediática como uma válvula o serviço dos seus desmandos. Abrem a torneira dos diretos e das imagens da insuficiência dos serviços públicos quando isso serve os seus interesses e fecham a mesma torneira quando pretendem transmitir uma ideia de paz social. Os problemas efetivos, esses, são perenes e quem os pretende esclarecer tem de superar este loop infernal que nos é imposto.
Este artigo divide a sua atenção em duas grandes secções. Na primeira, procura demonstrar que as insuficiências verificadas no Estado Social e em múltiplos serviços do Estado são o resultado de uma adoção irrefletida de um novo modelo de acumulação trabalho-intensivo, em que as políticas públicas não responderam às necessidades acrescidas de recursos públicos implícitas a esse modelo. A segunda parte reflete sobre o modo como o atual impasse político em torno do Orçamento de Estado pode, na verdade, ser explicado a partir dos reflexos políticos dos problemas estruturais analisados na parte anterior.
As causas estruturais
Sempre que escrevo sobre o modelo de desenvolvimento da economia portuguesa e as suas consequências para o debate sobre políticas públicas tenho o cuidado, quase obsessivo, de sublinhar que é fundamental ter sempre que muitos dos problemas que são tidos como conjunturais no debate público têm, na verdade, causas estruturais muito mais profundas, cuja responsabilidade não pode ser atribuída às ações contemporâneas dos decisores políticos. Embora se possa afigurar repetitivo para quem comete a imprudência de me ler com frequência, este sublinhado é da maior relevância para esconjurar muito do fetichismo em torno da forma como se discute economia, política e serviços públicos em Portugal.
Neste caso, o fator estrutural que importa detalhar para compreender a incapacidade de resposta demonstrada pelos serviços públicos é o modelo de crescimento pós-austeridade da economia portuguesa.
Um modelo de acumulação trabalho-intensivo
O modelo de crescimento da economia portuguesa pós-pandemia ficou caracterizado por uma expansão muita rápida de serviços transacionáveis trabalho-intensivos, impulsionados pelo grande choque positivo na procura de serviços de turismo, com as suas respetivas ramificações nos setores do alojamento, da restauração e do imobiliário. Verificou-se também uma expansão significativa da agricultura trabalho-intensiva, centrada em torno de uma eclosão de um grande número de explorações de estufas. Este último setor, embora com menor relevância macroeconómica do que a primeira, merece, no entanto, destaque nesta descrição por ter impactos geográficos relevantes na questão se pretende tratar.
Aqueles que têm tido este modelo por objeto de estudo – entre os quais me incluo – têm focado a sua atenção nos seus efeitos macroeconómicos de longo-prazo. Em particular, lançando um olhar crítico sobre fatores como os seus efeitos adversos no crescimento da produtividade de longo-prazo, a estabilidade macroeconómica de um regime assente na exportação de serviços. Nesse tipo de olhar, procura responder-se à questão: será este modelo de desenvolvimento desejável?
Aqui, no entanto, para responder às questões que motivaram este artigo deste artigo, vamos abstrair-nos dessa questão. Não se procura tanto aferir da desejabilidade do modelo, mas sobretudo fazer a pergunta nuclear para compreender, na raiz, os problemas apresentados pelos serviços públicos e as suas ramificações políticas. Isto é, Quais os efeitos de um modelo de crescimento trabalho-intensivo nos recursos orçamentais necessários à manutenção de qualidade dos serviços públicos de uma economia desenvolvida com um mandato constitucional de cobertura universal de saúde e educação?
O Efeito quantitativo necessário à manutenção das taxas de lucro
Um modelo de crescimento assente na exportação de serviços trabalho-intensivos encontra dificuldades numa economia madura, sem reservas significativas de trabalho informal. Rapidamente a força de trabalho necessária para corresponder aos choques de procura verificados por esses serviços se mostra incompatível com as taxas de lucro necessárias à expansão desses setores. A solução passa por mobilizar reserva de trabalho internacional, de modo a que o crescimento dos salários reais permaneça controlado e seja compaginável com o lucro e a acumulação nesses setores, mesmo apesar da baixa produtividade e das escassas possibilidades de aumentar muito os preços em face da forte competitividade-preço internacional. A imigração cresce rapidamente e com ela a população residente.
Sem surpresa, este choque quantitativo, caracterizado por uma rápida expansão da população residente cria pressão sobre os serviços públicos. Mais pessoas significa, sob uma constituição com mandato universal de provisão de serviços públicos de educação e saúde, maior necessidade de profissionais de saúde, educação e renovação ou construção de novas infraestruturas.
O perfil dos novos trabalhadores/utentes: língua, nacionalidade, estrutura etária
No entanto, compreender a profundidade do impacto nos serviços públicos implica ir muito para lá do estrito efeito quantitativo e pensar na forma como o perfil da nova força de trabalho coloca desafios aos serviços públicos. Uma recomposição rápida do perfil desses utentes, como aquela que sucedeu, pode significar um aumento da necessidade de recursos por utente para a manutenção de um mesmo nível de qualidade, conduzindo a uma necessidade de recursos orçamentais que se expande mais do que proporcionalmente.
Comecemos por considerar o perfil linguístico. Muitos dos novos utentes não têm um bom domínio do português. A sua devida integração, com a dignidade exigida, implica, pois, a necessidade de contratar profissionais capazes de dominar, pelo menos, a língua inglesa, de modo a prestar esses serviços de forma eficaz. Não se pode exigir aos já escassos trabalhadores da administração pública que tenham de lidar massivamente com utentes com os quais não conseguem comunicar eficazmente. Como pode o Estado pedir uma auxiliar de um hospital, que recebe o salário mínimo, que tenha ainda de adquirir conhecimentos de inglês? Como pode o Estado pedir a um professor que tem turmas já sobrelotadas que tenha o tempo e a dedicação para acompanhar crianças com um fraco domínio da língua portuguesa? A resposta é: não pode. Tem de reconhecer a necessidade de um maior investimento per capita na integração destes utentes, contratando mais profissionais com essas valências. Parece evidente que esse é um quadro que não está salvaguardado hoje. Esse é um imperativo não apenas do presente, mas do futuro. A integração das novas gerações depende deste esforço imediato. Não ter uma resposta na escola pública no presente condenará uma grande proporção das novas gerações da imigração ao insucesso escolar e a uma consequente segregação social com efeitos adversos na coesão social perpetuáveis durante décadas.
O segundo fator, com estreita ligações com o primeiro, prende-se com a nacionalidade dos novos trabalhadores. Por definição, os trabalhadores imigrantes provêm de outros países, na sua maioria fora do Espaço Schengen. A regularização da situação destes trabalhadores no mercado de trabalho português e nas diversas esferas da vida social (escolas, centros de saúde, segurança social) cria massivas necessidades burocráticas. A incapacidade de lhes responder atempadamente significa o aumento da pressão sobre os serviço, o descontentamento dos funcionários que têm de absorver essa pressão e o prolongamento das situações de precariedade laboral desses trabalhadores.
Finalmente, há também uma alteração súbita do perfil etário. Um país em envelhecimento acelerado observou uma nova vaga de trabalhadores em idade fértil e com descendência, conduzindo a uma recomposição rápida das necessidades do Estado Social. Talvez o caso mais evidente deste processo seja a necessidade de novos docentes, num contexto em que este choque de procura de novos alunos convergiu com um envelhecimento secular da classe docente, fruto de anos de mau planeamento e desincentivo à permanência no setor.
O agravamento e recomposição das necessidades regionais
A forma não linear como o influxo migratório – fruto do modelo de acumulação trabalho-intensivo – se manifesta nas necessidades estruturais dos serviços públicos torna-se ainda mais aguda quando introduzimos a lente espacial no processo de análise. Veio, por um lado, adicionar pressão em áreas onde a carência de recursos era já mais sentida. É o caso, por exemplo, dos cuidados de saúde primários na Área Metropolitana de Lisboa. Esta era uma área onde o SNS já sentia mais dificuldades, com uma elevada percentagem de cidadãos sem médico de família, sendo também a região a que os fluxos migratórios mais afluíram, como resultado da elevada procura de mão-de-obra para os setores turísticos nessa região.
Mas esse influxo criou também desequilíbrios geográficos de outro perfil. Uma porção significativa de migrantes foi mobilizado pela procura de mão-de-obra na economia de estufas e similares que se intensificou nos últimos anos. Essas explorações tendem a situar-se em zonas fora dos grandes aglomerados urbanos e que, nas décadas anteriores, estiveram num processo de declínio populacional. Em muitos casos, os serviços de educação e saúde dessas áreas estavam dimensionados para a população que estavam destinadas a servir. A subida na população registada para trabalhar nestas explorações agrícolas, mesmo que não significativa em termos absolutos, significou, em muitas freguesias e municípios, avultados aumentos percentuais de população, com pressão imediata nos serviços de saúde e educação para as quais nunca houve uma estratégia estruturada. Na verdade, como nos lembramos, esta reconfiguração regional foi sempre omissa da esfera mediática. Só o escândalo das situações de salubridade das condições de alojamento dos migrantes de Odemira interromperam esse silêncio por ocasião da pandemia, para logo depois caírem no esquecimento. Em termos de reflexão sobre o que tal significa para o Estado social – como para o cumprimento das condições laborais, acrescente-se – este foi e perdura sempre um ângulo morto na discussão pública em Portugal.
Os custos da habitação e a pressão sobre os serviços públicos
A expansão dos serviços trabalho intensivos tem uma relação estreita com a expansão da procura imobiliária e com subida dos custos habitacionais. Esta ligação já foi explorada em maior detalhe num texto anterior (ver aqui) e merece uma análise mais profunda sobre a centralidade do conceito de rentismo para o atual modelo de desenvolvimento português, que ficará adiada para um artigo futuro.
Para este artigo, porém, o foco estará atido ao modo como a subida dos custos imobiliários se repercute nos custos necessários para manter a qualidade dos serviços públicos. Como ponto de partida, é fundamental ter presente como a expansão das atividades turísticas impõe uma forte e abrupta pressão sobre os preços do imobiliário, fruto de uma confluência de fatores como a recomposição da oferta de habitação para arrendamento de curto-prazo ou a compra de habitações permanentes por parte de cidadãos de países com um rendimento per capita muito superior. O resultado deste efeito é, por um lado, uma subida considerável de um dos determinantes fundamentais do preço da habitação (o crescimento populacional), mas, com maior relevância, uma dissociação entre os fundamentos internos dos preços da habitação (crescimento populacional e crescimento dos salários internos) e a sua subida efetiva. O regime de acumulação trabalho intensivo aumenta a utilização da habitação para valores de uso secundários subordinados ao novo modelo de acumulação (arrendamento de curto-prazo ou venda de imóveis a estrangeiros para segunda habitação) ou à sua conversão em ativo financeiro (no caso da intensificação bem habitacional numa carteira de ativos) impulsionada pela forma como o modelo de acumulação favoreceu o aumento da rentabilidade do setor imobiliário.
Com efeito, os custos habitacionais cresceram mais rapidamente do que o rendimento disponível interno e as receitas fiscais.
O segundo aspeto a reter neste encadeamento lógico é que a sustentabilidade dos serviços públicos requer uma grande mobilidade de profissionais no território. Na verdade, muito maior do que maioria dos outros setores de atividade. Num país em que as necessidades territoriais estão sempre a mudar e em que os centros educacionais de formação de muitos dos profissionais se encontram muito concentrados, a existência dessa mobilidade é essencial para a homogeneidade da qualidade do serviço prestado. Todos os anos milhares de enfermeiros, médicos, professores e muitos outros funcionários têm de ser deslocados para muito longe da sua área de residência. Ora, é exatamente este perfil de profissional que mais é afetado pela subida dos preços habitacionais.
Num contexto em que os preços de compra e arrendamento de habitação se encontram dentro de intervalos razoáveis e evoluem de acordo com os rendimentos internos, esta mobilidade encontra-se facilitada. Um polícia ou professor recém-formado no centro do país que se veja colocado numa esquadra ou numa escola na periferia de Lisboa conseguiria, nesse quadro, com o valor do seu salário, pagar a renda correspondente à sua deslocação geográfica e iniciar as suas funções. Mas essa fluidez territorial dos recursos humanos cessa quando os salários não cobrem os valores de arrendamentos. O resultado são recursos humanos mais rígidos no território, com a maioria dos recém-formados a manterem-se a uma distância pendular de locais onde as suas necessidades habitacionais se encontram satisfeitas – que, no caso dos jovens profissionais, corresponde amiúde à habitação parental.
O Estado confronta-se, pois, com uma decisão difícil. Por um lado, pode promover aumentos salariais de vulto para compensar esta subida dos custos habitacionais. Mas, face à escalada de rendas e habitação que ascenderam a mais de 100% em escassos anos, aumentos salariais de natureza incremental tornam-se ineficazes. Os profissionais recém-chegados à profissão ou os mais antigos que são confrontados com solicitações de mobilidade confrontam-se, mesmo após os aumentos, fruto do aumento com os custos habitacionais, com cortes reais de salário face ao que os seus pares tiveram no início da profissão. Com efeito, os aumentos incrementais não solucionam o problema nem garantem o fim das relações laborais tensas nesses setores. Sendo inviável promover aumentos salariais do montante que garantiria a resolução deste conflito, o resultado, por exclusão de partes, é aceitar a degradação dos serviços públicos que resultam da dificuldade de dispor esses profissionais no território. Não por acaso, é na Área Metropolitana de Lisboa o local onde a falta de médicos de família se faz sentir de forma mais aguda.
A pressão dos custos de habitação sobre os serviços públicos deixa claro como adoção ativa ou anuência implícita com um dado modelo de desenvolvimento pode deixar os decisores públicos manietados politicamente no seu desenho de políticas públicas e diminuir a capacidade de uma gestão não conflitual do Estado Social.
Mecanismos de amplificação
Nos parágrafos anteriores, mostrou-se como o regime de acumulação trabalho-intensivo da economia portuguesa no período pós-austeridade cria uma grande descontinuidade positiva nos recursos orçamentais necessários para a manutenção da qualidade dos serviços públicos. Aqui avança-se mais um passo na análise e reflete-se sobre como, além das necessidades criadas, existiram importantes fatores adicionais que contribuiram para amplificar as carências do Estado Social.
A austeridade precedente
O primeiro importante fator de amplificação é a austeridade precedente. Isto é, temos de acrescentar à análise o quadro de partida sobre o qual o novo modelo de acumulação foi operar.
Esse quadro era de profundas insuficiências acumuladas durante os anos de austeridade. Não apenas o modelo-trabalho intensivo trouxe novas necessidades, como estas já se haviam acumulado durante os anos anteriores. Nesses anos, foram os serviços públcios a absorver a maioria do embate causado pela aplicação do programa da Troika em Portugal. Ao contrário do que é sugerido, esses efeitos não são de curta-duração. Podem não se revelar logo, mas ficam latentes e emergem a jusante, como no caso da não renovação atempada dos recursos humanos ou da desadequação da sua estrutura salarial. Os serviços podem aguentar durante uns anos, mas evidenciam a sua exaustão à medida que os pedidos de reforma se sucedem ou os trabalhadores abandonam a função pública.
Pode impor-se, para fins de ilustração, o paralelo com as necessidades hídricas de uma planta para o seu desenvolvimento. Se mudarmos uma planta para uma casa localizada numa região com um clima mais quente (aqui metaforicamente equiparada à transição para um modelo de acumulação trabalho-intensivo) as suas necessidades hídricas aumentam. No entanto, se mesmo antes da mudança dessa planta as suas necessidades hídricas já tiverem sido descuradas pelo seu proprietário nas semanas anteriores, deixando a terra secar (aqui equiparadas ao corte de recursos durante o período da Troika), então a necessidade de compensação futura será ainda maior. Como veremos de seguida, constrangimentos de economia política determinaram que essa compensação não se verificasse. Num prolongamento já cansado da metáfora, ver-se-á de seguida o motivo pelo qual o regador foi curto - salvo seja.
A consolidação orçamental como monocultura política
Durante o período pós-Troika, à medida que se desenvolvia o novo modelo de acumulação, o Governo atribuiu a centralidade da sua estratégia à capacidade de compaginar dois eixos de ação: a reposição de rendimentos, para assinalar o seu corte com o período de cortes salariais e de congelamento do salário mínimo do período de austeridade, e a consolidação orçamental, definindo como objetivo a redução dos déficits e a criação de excedentes orçamentais. Não se pretende aqui convocar o debate sobre a virtude ou a ausência de virtude desta estratégia, já que tal escolha nos conduziria, por certo, a uma divagação mais longa do que aquela que é útil para a finalidade deste artigo. No entanto, vale a pena sublinhar que a consolidação orçamental era um pilar fundamental para a afirmação política do novo governo. No plano interno, por permitir a dissociação da imagem de laxismo orçamental que a direita colara ao Partido Socialista nos acontecimentos que desembocaram na chegada da Troika, mas também, e sobretudo, no plano externo, para legitimar o novo Governo aos olhos da Comissão Europeia, para quem a trajetória de consolidação orçamental (a par da manutenção das reformas de sentido liberalizador no mercado de trabalho) constituíam as linhas vermelhas de alinhamento político com a ordem ordoliberal que representa.
Durante vários anos, o Partido Socialista conseguiu navegar esse equilíbrio, articulando a progressiva devolução de rendimentos com a diminuição do défice orçamental e, mais tarde, com o registo de excedentes. Mas esta estratégia, propalada com a propaganda da hora, com sugestões de artes alquímicas operadas pelos vários magos da pasta das Finanças, teve um custo: uma alocação muito insuficiente de recursos nas áreas do Estado Social. O investimento público afundou-se e os gastos públicos nessas áreas cresceram, durante vários anos, abaixo do crescimento económico. Este processo foi amiúde conduzido de forma insidiosa, com a execução orçamental a ficar sucessivamente abaixo dos valores orçamentados e acordados com os parceiros da esquerda parlamentar.
Finda a devolução de rendimentos, a estratégia política tornou-se ainda mais unidimensional. A consolidação orçamental transformou-se numa monocultura política. O acordo com os parceiros de esquerda foi rompido e a reflexão sobre as necessidades orçamentais pareceu definitivamente afastada. A escolha foi um uma política de anúncios, de bónus pontuais, mas sem o reconhecimento do problema silencioso que se avolumava nos serviço públicos.
Assim, o regador foi curto. Como a planta a quem não se oferece água suficiente depois de anos de incúria e de mudança para um clima mais quente, também um Estado social privado de recursos, depois de anos de suborçamentação e de um novo modelo de crescimento mais exigente para o seu funcionamento mostrou-se fatal. O período que vivemos é o ponto de convergência de todo este processo.
O apoio à expansão de setores que concorrem com fatores de produção do Estado Social
Os parágrafos anteriores debruçaram-se sobre os dois grandes mecanismos de amplificação das pressões colocadas por um regime trabalho intensivo sobre os serviços públicos e o Estado social: a austeridade que o precedeu e a dimensão da consolidação orçamental posterior, à custa do investimento e dos gastos públicos nesses setores.
Pode-se, contudo, alargar o leque de fatores em análise, lançando um olhar sobre outras dimensões ainda ausentes do debate público. Um desses casos, notável pela forma como compagina total falta de reflexão pública com elevada relevância para muitos dos problemas que ocupam várias horas de debate, refere-se à gestão dos recursos humanos do SNS.
Haverá poucas políticas públicas mais insensatas do que um Estado com mandato de prestação universal de um serviço promover a expansão de setores que competem por fatores de produção necessários à sua prestação. Sobretudo quando esses fatores são inelásticos e, por conseguinte, qualquer fonte de procura adicional se traduz num aumento acentuado do seu custo. No entanto, foi exatamente isso que o Partido Socialista fez ao longo de quase uma década no poder. Apesar de saber que a oferta de profissionais de saúde, especialmente médicos, era escassa – fruto de políticas irresponsáveis na formação de recursos humanos no setor que se perpetuarão durante décadas – aprovou a criação de inúmeras unidades de saúde privadas que foram constituir uma fonte de procura adicional pelos médicos do SNS. Mais importante, essa expansão acompanhou uma tendência que se vem verificando há mais de duas décadas em Portugal, com a transição dos grandes grupos financeiros para a área da saúde. Não falamos do aumento da pequena clínica privada – que durante muitos anos foi a base da prática clínica fora do SNS – mas antes da expansão dos grandes hospitais de grupos como a CUF, os Mellos e o ex-BES Saúde. A sua dimensão no setor, os elevados influxos de fundos provindos dos beneficiários da ADSE, dos contratos com o SNS e os meios provenientes de um setor segurador florescente, capaz de captar o rendimento de uma classe média-alta/alta com preconceito do SNS ou frustrada com as suas insuficiências, fazem com que o setor privado seja capaz de oferecer condições salariais aos médicos superiores às pagas pelo SNS, sobretudo em clima de estagnação salarial subordinado à estratégia de redução do défice.
O auto-boicote desta ação deveria ser evidente – o Estado está a jogar contra si mesmo. O seu reflexo é criar uma pressão estrutural nas despesas públicas do SNS, já que o Estado tem agora de alocar mais recursos orçamentais para conseguir reter profissionais de saúde que, na ausência desse aumento, migrarão para o setor privado. De resto, foi o que sucedeu. Com um governo que se recusava a aumentar suficientemente os recursos do SNS, ao mesmo tempo que este e todos os outros fatores já elencados, o desfecho pouco surpreendente foi uma amplificação das necessidades estruturais do SNS e das suas insuficiências.
A errada alocação dos escassos mecanismos de correção
Existem boas razões para ser cético acerca da adoção de medidas incrementais, designadamente a aplicação de pequenos esforços orçamentais, para fazer face aos fossos entre os recursos e as novas necessidades estruturais criadas ao longo dos últimos anos. Mas vale a pena observar que mesmo as escassas medidas que pretendem enfrentar este problema de forma incremental sofrem de enviesamento na sua alocação, comprometendo a sua capacidade de alinhar as receitas geradas pelo novo modelo de desenvolvimento com o financiamento dos serviços públicos.
Tome-se o caso das taxas turísticas aplicadas por muitos municípios. Segundo quem as aplica, a racionalidade subjacente à medida é a criação de recursos públicos para compensar as despesas e investimentos necessários para compensar a pressão turística, em áreas como a limpeza urbana. Contudo, a grande parte das carências de recursos criadas pelo turismo extravasa o domínio municipal. Infelizmente, os seus efeitos não são de identificação tão imediata e tangível como uma rua suja, mas são bem reais - residem nas necessidades da escola pública, do SNS, dos serviços de migração, na habitação. Estas são responsabilidade do Estado central, mas não é a este que afluem as receitas das taxas turísticas.
O problema é evidente: mesmo os recursos das mais elementares medidas incrementais não afluem onde são criadas as maiores carências. Pode contrapor-se que o Estado tem receitas fiscais acrescidas pelo crescimento económico garantido por este modelo de acumulação. Mas há uma diferença fundamental: ao contrário das taxas, os impostos não são consignados. Isto é, não há qualquer obrigação do Estado aplicar esse acréscimo de receitas na compensação das necessidades estruturais causadas pelo turismo. Perante governos para quem o reconhecimento dessa necessidade esteve sempre ausente e para os quais a consolidação orçamental constituía o seu maior (por vezes único) referencial de qualidade de governação, o resultado foi o esperado: a bonança das receitas fiscais foi utilizado para reduzir o défice sem cuidar das necessidades emergentes.
A relevância deste ângulo de análise no combate à extrema-direita
Colocar a discussão sob um ângulo estrutural, com uma reflexão assente no modelo de desenvolvimento, revela-se de grande eficácia no combate à extrema-direita.
O discurso dessa área política extrai grande parte da sua eficácia da capacidade se aproveitar de sentimentos de injustiça social que têm um fundo legítimo e subordiná-los a compulsões primárias, amiúde de reação à diferença, ao estranho e ao outro. Este é um processo de que a extrema-direita portuguesa vem manejando com grande perícia ao longo d últimos, transformando o ressentimento dos territórios mais abandonados e periféricos de Portugal num vulcão de intolerância para com a diferença dos que chegam.
Não é preciso forçar alegorias rebuscadas para compreender a origem da sua eficácia. Tome-se o caso de concelhos envelhecidos, muitos com perda de população ao longo das últimas décadas, que verificaram uma chegada de uma grande massa humana migrante para trabalhar na crescente economia intensiva das estufas. Para lá da resistência cultural que sempre acontece nestes casos (e que a esquerda não deve subestimar nem subordinar apenas a outros fatores de ordem económica), esta moldura humana vem acompanhada de mudanças materiais na qualidade de vida dessas populações: os centros de saúde e hospitais, antes adaptados à dimensão da sua população, encontram-se agora sobrecarregados; as escolas, antes adaptadas a uma escassa população em idade escolar, têm agora dificuldade em responder a uma elevada proporção de crianças em idade escolar com necessidades educativas especiais e a habitação, antes arrendada num mercado quase fechado, entre gerações e cidadãos locais, é agora dificultada, fruto da pressão populacional e, também, da disponibilidade da população migrante aceitar, muitas vezes, mercê da precariedade social e laboral, condições de sobrelotação habitacional inaceitáveis para as populações locais. Neste quadro, não custa perceber a capacidade de penetração do discurso da extrema-direita nestas regiões. A culpa é apontada aos outros, aos estrangeiros, que se vêm ocupar o espaço, as casas e dificultar o acesso aos serviços. É uma estrutura causal linear, que oferece uma explicação para uma insatisfação com bases reais e atua como mecanismo de ressonância à resistência cultural que se faz sentir.
O contra-argumento oferecido por uma certa esquerda centrista e liberal, onde o Partido Socialista se integra, serve de pouco na oposição a este argumento. É insuficiente porque se atém a uma atitude proclamatória de valorização da diferença, do arvorar da anti-xenofobia e do anti-racismo, valores que, constituindo a base sobre a qual se deve erguer o edifício axiomático de qualquer democrata, não constituem, por si, armas contra o discurso da extrema-direita por não responderem aos anseios de resposta material das populações. No fim do dia, as escolas continuam sobrelotadas, os centros de saúde sem resposta e as casas mais caras. A moldura humana estrangeira continua a ser o elemento novo e tangível, de responsabilização fácil, a que o centro-esquerda responde com a imaterialidade dos princípios e a abstração dos valores. O fosso entre a proclamação e a ação do Partido Socialista durante a sua governação no domínio da defesa do Estado Social foi, em matéria de expansão da extrema-direita, fósforo em seara seca.
Colocar a insuficiência dos serviços públicos sob o prisma de uma análise estrutural abre caminho à superação deste problema. Em primeiro lugar, demonstra como os movimentos migratórios não são fruto de um desejo de invasão, de tomar o que é nosso – como a extrema-direita gosta de apresentar o problema – mas tão somente o resultado de um modelo de desenvolvimento trabalho intensivo de muito rápida expansão numa pequena economia madura. Os cidadãos de outras nacionalidades e continentes vêm como pressão desse modelo de desenvolvimento, com empresários que precisam de uma oferta de trabalho suficientemente elástica (com subida contida dos salários reais) para prosseguir com o seu modelo de negócio escasso em ganhos de produtividade. Com efeito, os fluxos migratórios são endógenos ao modelo de desenvolvimento. Os fluxos de migrantes são estruturalmente determinados. Por outro lado, permite denunciar o modo como a ausência de reflexão quanto aos custos externos deste modelo de desenvolvimento, a par de uma política pública unidimensional, exclusivamente focada na consolidação orçamental, impediu a antecipação de muitos dos problemas e a sua resolução, através de um reforço atempado dos meios humanos e materiais necessários. A culpa do descontentamento social deixa de ser colocada no estrangeiro (como a extrema-direita), ou na ausência de bons valores (como faz o Partido Socialista), mas antes nos responsáveis pela reprodução irrefletida de um modelo de desenvolvimento.
Se o problema é estrutural, de quem é a responsabilidade política?
Uma das críticas frequentes àqueles que enfatizam a origem estrutural de um dado problema de políticas públicas é que essa abordagem redunda numa desresponsabilização política dos governantes. Se a causa de um problema advém da estrutura/modelo e as suas causas e possibilidades de resolução extravasam as ações imediatas destes, então este plano de análise está condenado a identificar responsabilidades demasiado gerais -seguindo o famoso adágio “a culpa é de todos, a culpa é de ninguém” – ou a considerar a integral ausência dessas responsabilidades, no caso em que o determinante estrutural for tido por puramente exógeno.
Estas acusações são, como se pretende demonstrar, tão comuns quanto falsas. O que se pretende sublinhar quando se apela às características estruturais do modelo é que as ações contemporâneas de quem governa ou de quem governou imediatamente antes (para abranger aquele fastidioso passa culpas do rotativismo político português) não têm qualquer relevância explicativa para problemas como a falência crescente dos serviços públicos. A responsabilidade não se encontra na competência do ministro da tutela, nem nas capacidades dos gestores públicos envolvidos. Ou, pelo menos, não depende fundamentalmente deles.
Aceitar essa proposição implica que nos contentemos com orfandade da responsabilidade política? Claro que não. Implica antes procurar os responsáveis, por ação ou omissão, da causa estrutural identificada. Neste caso, implica questionar: quem são os responsáveis pelo modelo de desenvolvimento trabalho-intensivo e por que não foram capazes de antecipar e intervir sobre os seus efeitos adversos na sustentabilidade dos serviços públicos?
O atual modelo de desenvolvimento tem, ao contrário do que é sugerido nas diatribes espúrias que povoam a discussão desta estância de banhos e cosmopolitismo de tosta de abacate à beira-mar plantado, uma gama mais vasta de pais do que seria de prever. Na verdade, a defesa, mais ou menos apaixonada, deste modelo federa todo o espaço político português compreendido entre o centro-esquerda e a extrema-direita, do Partido Socialista ao CHEGA. Não por acaso, este mesmo arco une-se na defesa acrítica de uma governação económica herdeira de Maastricht, da limitação da soberania sobre a política monetária, a política orçamental e as capacidades de planeamento de um Estado. A discussão sobre os efeitos de cada um destes elementos para as políticas de desenvolvimento mereceria um artigo tão longo como este. Dada a impraticabilidade dessa ação, terá de haver alguma confiança entre o leitor e quem lhe escreve. A premissa que terá de aceitar é que estes elementos constituem constrangimentos fortes à autonomia do projeto de desenvolvimento da economia portuguesa.
Em virtude desses fortes constrangimentos, existe a perceção partilhada nesse intervalo do espectro partidário português de que o turismo e a exportação de serviços constituem a vantagem comparativa do comércio internacional e que a expansão desse setor é, não apenas essencial para estabilidade macroeconómica, como também para promovera eficiência. Sendo um serviço transacionável, permite reequilibrar a balança de pagamentos. E, assentando em recursos que são não-reproduzíveis (o património cultural e natural do país) está, em tese, menos suscetível a ameaças de competitividade vindas de outras regiões. Têm ainda a tentação de sugerir que o modelo assente na circulação de turistas e nómadas digitais é um passo importante para avançar no padrão de sofisticação tecnológica da estrutura económica portuguesa. Quando questionados sobre os canais que assegurariam tão auspicioso caminho, tendem a resvalar para o wishful thinking. Logo se inisinua um emaranhado de unicórnios, start-ups e conceitos similares. A esperança, no fundo, é que a movimentação e fixação temporária de pessoas provindas de economias tecnologicamente mais desenvolvidas possa catalisar o avanço da economia portuguesa. Conhecimento básico de como operam transformações tecnológicas inspiraria, no entanto, cautela – ou melhor, desdém – sobre conceções de transição tecnológica aceleradas por nómadas digitiais qualificados que trabalham para o exterior por curtos espaços de tempo em território nacional, sem que estabeleçam contactos relevantes com empresas ou instituições portuguesas.
No entanto, a responsabilidade política deve ser imputada não tanto pela desejabilidade ou não do modelo – afinal, como definimos logo no início do artigo, essa é uma questão de que não nos iríamos primariamente ocupar – mas antes pela incapacidade de reconhecer os riscos que esse modelo colocava para a sustentabilidade do Estado Social cuja preservação e acesso universal está consagrado na constituição. Essa incapacidade foi manifesta na forma como nunca foi produzida reflexão sobre os potenciais efeitos nefastos dos efeitos do turismo sobre o aumento da pressão sobre os recursos dos serviços públicos, o aumento dos seus custos por meio do aumento dos custos de contexto (caso da habitação) ou como se promoveu uma política de consolidação orçamental acelerada com sacrifício do serviço público, exacerbando o problema da falta de recursos a longo-prazo.
Pelo contrário, existe grande convergência entre o centro-direita e o centro-esquerda português sobre as indelimitáveis virtudes do modelo trabalho-intensivo prosseguido. Muito recentemente, Carlos Moedas disse, em entrevista, que não via malefícios no crescimento do turismo . Mas algo semelhante já tinha dito também Fernando Medina, anos antes, quando era presidente da CM de Lisboa. Une-os uma profunda irreflexão sobre os processos de desenvolvimento em curso e o papel das políticas públicas na sua regulação e redefinição. As diferenças entre o PS e a direita política neste domínio são apenas de intensidade do modelo e abertura para redistribuição de parte dos seus ganhos. Enquanto o PS começava a reconhecer abertura para colocar moderação modelo (embora tardiamente, num plano em que o problema já se tornara já tão profundo que as medidas de mitigação propostas pouco poderiam fazer), a direita transforma os empresários do turismo e os rentistas imobiliários do alojamento local na sua guarda-de-choque social, mostrando querer aprofundar o modelo até à sua exaustão. Assim, pode entender-se a responsabilidade política da causa estrutural que hoje conduz à insuficiência dos serviços públicos como um grande espaço político compreendido entre o PS e a extrema-direita, caracterizado pela ausência de reflexão do modelo desenvolvimento promovido, fruto da submissão acrítica ao modelo de governação económica implicitamente reservado para uma economia portuguesa no atual quadro de integração europeia.
Conclusão (da 1ª parte)
Um regime de acumulação trabalho intensivo (como é aquele em que assente o complexo turístico-imobiliário) causa um incremento estrutural das necessidades de despesa pública real para preservar qualidade dos serviços públicos. No caso português, não só este reconhecimento não fez parte da discussão pública, como a ambiência de política económica em que ocorreu implementação do modelo de crescimento pós-austeridade tornou a correspondência a estes desafios sobremaneira difícil. Portugal acabara de sair de um período de intensa austeridade no quadro do programa de ajustamento imposto pelas instituições europeias e pelo FMI, o que, por si, também criava uma necessidade de compensar a falta de investimento e gastos públicos que ocorreram nesses anos. Mas não foi isso que sucedeu. Apostado numa estratégia de rápida consolidação orçamental, o novo Governo só muito moderadamente inverteu a tendência do governo anterior em relação aos serviços públicos. Os gastos correntes reais em saúde e educação subiram apenas modestamente, não acompanhando o crescimento do PIB. O investimento público, por seu lado, prosseguiu a sua permanência em mínimos históricos durante vários anos, tendência que só viria a ser interrompida nos anos posteriores à pandemia.
Com efeito, os dois mais recentes ciclos de crescimento da economia portuguesa, o período de austeridade e, mais tarde, um modelo intensivo em trabalho, impulsionador de um rápido incremento populacional, atingiram a economia portuguesa como dois choques que forçariam um aumento robusto do consumo e investimento públicos para conservar a sustentabilidade dos serviços do Estado. Essa foi uma necessidade não reconhecida pela política pública nas últimas décadas. Favoreceu-se uma lógica de pequenos aumentos incrementais nos recursos a esses serviços, sugerindo que tais aumentos incrementais de recursos se traduziriam em melhorias incrementais dos serviços. Esta conclusão é enviesada por considerar, implicitamente, que os recursos necessários para manter a qualidade desses serviços se havia mantido aproximadamente constante. No entanto, como se procurou demonstrar, esse é um salto lógico ilegítimo, já que, contemporaneamente, se operaram profundas descontinuidades, que requeriam aumentos significativos dos recursos dos serviços públicos apenas para manter a sua qualidade. O resultado foi uma deterioração do acesso, qualidade e capacidade de retenção dos profissionais. A lição é clara: não existem soluções incrementais para modelos de desenvolvimento que criam dificuldades estruturais aos serviços públicos.
Segunda parte
O reflexo político: O ensejo da direita perante um Partido Socialista enredado na sua teia
Na parte anterior do texto, demonstrou-se como convocar uma visão estrutural sobre o modelo de desenvolvimento permite aumentar o grau de esclarecimento de fenómenos económicos e sociais, como os sinais de insuficiência dos serviços públicos, permitindo a evasão dos limites redutores em que a análise destes fenómenos é mantida no espaço público. Refletiu-se também sobre a forma como esta perspetiva de análise se revela particularmente útil no combate à penetração do discurso da extrema-direita e na antecipação de custos sociais futuros.
Aqui procura-se ir mais longe e mostrar que este plano de análise permite explicar a camisa-de-forças política em que se encontra o Partido Socialista quanto à decisão do seu voto no próximo Orçamento de Estado.
O Partido Socialista encontra-se crescentemente manietado na gestão política deste processo. E não é difícil perceber porquê: Pedro Nuno Santos sabe que, por um lado, uma abstenção neste orçamento significaria invocar forças externas e internas a que o seu mandato dificilmente sobreviveria. No plano externo, significaria entregar a liderança da oposição à extrema-direita. Internamente, significaria capitular perante os que, no seu partido, sempre foram favoráveis a alianças ao centro e em oposição às quais sempre se posicionou. O desfecho desse voto seria, a prazo, a perda de influência do Partido Socialista e o fim da liderança de Pedro Nuno Santos.
No entanto, a concretização desse voto contrário parece de concretização cada vez mais difícil, já que o PSD está apostado em utilizar todos os recursos orçamentais necessários para garantir a insustentabilidade política de um voto contrário do Partido Socialista. A lista de medidas é extensa: suplementos avultados para as forças de segurança, bónus para pensionistas, subsídios para professores deslocados, diminuição da retenção de IRS, passe ferroviário nacional. De caminho, claro, vai fazendo o seu charme junto dos setores que verdadeiramente defende e que também se mostrarão gratos. Caso da crescente contratualização de serviços com o setor privado no SNS, por exemplo. Bem pode Pedro Nuno Santos gritar que a proposta anterior para a redução do IRS jovem foi sua - e o facto de a sua medida emblemática ser uma cedência ao foco político da direita não deixa de ser irónico – que isso de pouco lhe valerá. Assim como será quase ininteligível explicar os detalhes que o levaram a ser a favor do IRS Jovem no anterior formato, mas ser contra o novo formato proposto para o próximo Orçamento de Estado. Para a maioria da população, a associação política de uma medida é estabelecida com quem ocupa o governo nesse momento e, com efeito, será o PSD a beneficiar dos seus efeitos.
Acossado, o Partido Socialista tem procurado duas estratégias para tentar sair deste beco político. O primeiro trata de apontar as incoerências gritantes dos valores proclamados pela direita e as medidas que agora está a implementar. A direita, sempre tão avessa a medidas universais, zelosa do princípio do utilizador pagador e vigilante quanto às estratégias governamentais que procurem capturar votos de segmentos eleitorais, mostra-se agora a sua maior defensora. O caso mais gritante é quase risível: a direita que aumentou os passes sociais durante a Troika, que sempre combateu lógicas de coletivização dos custos dos transportes públicos, que exortava à grandes injustiças de todos pagarem aquilo de que só alguns beneficiavam e que, escassos meses antes, votara desfavoravelmente o passe ferroviário nos serviços regionais, mostra agora abertura a um passe ferroviário nacional, sem que mostre qualquer estratégia para expandir a oferta dos serviços de longo-curso.
O segundo vetor de ataque do partido de Pedro Nuno Santos concentra-se na gestão das finanças públicas. De novo, pretende-se expor a incongruência do PSD. Afinal, como pode um partido estar disponível para tanta expansão orçamental num tão curto intervalo de tempo, quando amiúde criticou o Partido Socialista por não levar a consolidação orçamental longe o suficiente? A este propósito vale a pena lembrar, por exemplo, os textos patéticos de Joaquim Miranda Sarmento (eu prometi que me continha nos adjetivos da minha prosa, mas abro uma exceção para mimar este meu pequeno ódio de longa-data) onde o nosso cavaquinho de segunda encarnação discorria sobre o facto de a contração do saldo estrutural (variável não observada, baseada em cálculos falíveis de uma taxa natural de desemprego) não estar em linha com as normas da UE, apesar das redução do défice verificadas. A contradição é, de facto, gritante.
Coloca-se, então, a questão: se as incoerências apontadas são tão vincadas, por que motivo se mostra o Partido Socialista incapaz de capitalizar o ganho político de as assinalar? A resposta a esta questão é tão simples quanto desassombrada: porque a política não é um campo que premeia a consistência lógica, mas a resolução dos problemas dos seus eleitores. Aos cidadãos que observam ganhos na sua condição (mesmo que marginais e envoltos em propaganda) importa pouco se essas medidas se encontram ou não alinhadas com o património ideológico e a prática política recente de quem os aplica. E, com efeito, será o PSD a capitalizar politicamente este momento.
Da conclusão retirada acima devemos retirar que o Partido Socialista é vítima de um eleitorado sem memória nem cultura política? A resposta a esta questão tem de ser negativa. Não desprezando que esses são elementos prevalecentes no eleitorado português, o Partido Socialista só se pode culpar a si próprio por se encontrar neste difícil impasse político.
A compreensão desta afirmação decorre diretamente do plano de análise que aqui se vem desenvolvendo. Durante a sua governação, o Partido Socialista ignorou os efeitos externos de um modelo desenvolvimento e desenvolveu a fantasia política de que era possível extrair crescimento máximo desse modelo sem acautelar os recursos orçamentais que seriam necessários para o Estado Social. Isto é, apesar de assentar a sua aceitação política na adoção de medidas como a devolução de rendimentos e a subida do salário mínimo, mostrou-se sempre relutante em alocar recursos significativos à valência do Estado Social, numa altura em, como vimos, essas necessidades de estavam a expandir.
No primeiro embate decisivo criado por esta inconsistência entre o modelo de desenvolvimento e o exercício político, o governo do Partido Socialista saiu vencedor. Em 2021, quando Bloco de Esquerda e PCP exigiram expansão de recursos para o SNS e para a escola pública como condição necessária para a aprovação do Orçamento de Estado de 2022, o PS considerou que tinha argumentos políticos para dramatizar essa insistência e convocar eleições antecipadas e tentar a maioria absoluta. Estavam corretos. O PS sucedeu em apresentar esta insistência como um capricho e um ato de inflexibilidade política dos outros partidos de esquerda. Em 2022, a maioria absoluta estava consumada.
O problema é que todos os truques têm um prazo de validade. Em novembro de 2023, quando o Governo de maioria absoluta caiu inesperadamente por motivos externos ao contexto político, a situação já era bem diferente. A degradação da posição do Governo era evidente. Mais dois anos de aprofundamento desse modelo de desenvolvimento tornavam o seu esgotamento cada vez mais evidente, com seus efeitos a atingirem um número crescente de segmentos sociais nos mais diferentes domínios, como no acesso à habitação e às várias valências do Estado Social. Prosseguir o ritmo de consolidação orçamental sem cuidar do descontentamento social que se estava a gerar seria cada vez mais difícil. A manobra panfletária das “contas certas” como aforismo para absorver todo o centro político estava esgotada. Reveses que acontecem a quem governa sempre sustentado no tacticismo.
Se o Governo tinha ou não consciência da inconsistência temporal da política que estava a seguir é uma questão que a demissão forçada de António Costa deixará sempre em aberto. Muitos sugerem, veiculando uma hipótese plausível, que o Governo planeava implementar uma política orçamental expansionista no final do mandato, mais próximo do momento eleitoral, considerando que essa ação no final do ciclo político seria suficiente para reconquistar o apoio político.
Verdade ou não, a demissão de António Costa e a chegada da direita ao poder deixava um cenário político perigoso para o Partido Socialista e a esquerda em geral: uma consolidação orçamental intensa a par de serviços públicos subfinanciados, uma crise galopante na habitação e contestação aberta em muitas carreiras da função pública apresentava-se como um enorme brinde para a direita. Afinal, perante uma imagem de problemas que se arrastam sem intenção de rápida resolução, qualquer melhoria, por mais marginal, tem frutos políticos.
Como seria de esperar, a direita não se fez rogada perante o ensejo criado pelo Partido Socialista e dedica-se, desde que chegou ao poder, a alocar recursos a alguns desses problemas. Podem ser insuficientes, parcelares e enrolados em propaganda. Pouco importa. O que importa é a perceção de que havia espaços de contestação que, parecendo irresolúveis com o governo do Partido Socialista, foram resolvidos rapidamente pelo novo Governo. A solução não foi, claro, a maior qualidade de gestão política do PSD, nem tão pouco a aplicação de um elemento específico do seu ideário – foi tão somente a disponibilidade de alocar recursos orçamentais vitais para aliviar um pouco da tensão social e sobre os serviços públicos.
Será suficiente? Obviamente, não. Como vimos, os problemas criados por este modelo de desenvolvimento são profundos e prestam-se pouco a encontrar resolução em medidas incrementais. No entanto, a ação presente do governo é suficiente para gerar alguns ganhos políticos de curto-prazo e deixar o Partido Socialista numa situação política difícil em relação ao Orçamento de Estado. A abstenção significa o cair da face da liderança de Pedro Nuno Santos e a entrega da liderança da oposição à extrema-direita. O voto contra pode significar um cenário de eleições antecipadas onde o Partido Socialista terá escassas hipóteses de melhorar o resultado, pelo contexto político já explicado. Se fugir o bicho pega, se ficar o bicho come. Não há saídas seguras agora. O mal está feito.
Infelizmente, temo que os efeitos políticos desta situação criados por este perfil de governação podem ter efeitos de longo-prazo que se podem estender bem para lá do ciclo orçamental e afetar toda a esquerda. O potencial para efeitos adversos de longo-prazo pode ser bem ilustrado pela estratégia do atual Governo na saúde. De modo a orientar os recursos orçamentais para os interesses privados que defende, o Governo tem aumentado a contratualização de serviços com o setor privado de saúde, encaminhando um número crescente de utentes do SNS para este último. Aqueles que se posicionam à esquerda não duvidam da intenção desta decisão nem da sua ação danosa para o SNS e para o Orçamento de Estado: externalizar estes serviços é mais dispendioso e acelera a incapacidade de reter profissionais e competências dentro do SNS. Mas, para a maioria da população, tal pouco interessa. O importante é que a fila de espera diminui e tiveram acesso aos cuidados de saúde. O mesmo efeito seria possível com a devida alocação de recursos públicos ao SNS, mas como a essa melhoria se regista em resultado dessa contratualização com o privado, a perceção pública que é criada é que “os privados são mais eficientes” e que “a contratualização com os privados é a estratégia adequada para a resolução”. Para a perceção política de massas, correlação costuma mesmo ser causalidade. E este será só mais um fator de dificuldade futura na explicação das vantagens de um SNS universal público e gratuito para todos.
As contas certas e as vistas curtas do Partido Socialista, infelizmente, têm um impacto estrutural sobre toda a esquerda, mesmo sobre aquele que, em tempo próprio, preveniu para o desastre anunciado. O futuro não é auspicioso.