Ainda está fresca a dor do espinho cravado na carne de todos os democratas no passado Domingo. O tempo é ainda de balanço emotivo, com a razão toldada pelo desfecho expectável, mas nem por isso menos desconcertante, destas eleições. Mas há erros de análise persistentes com os quais não podemos transigir nem adiar a crítica. Quanto mais não seja porque são parte relevante da formação da atmosfera política que ameaça a esquerda e a democracia.
O erro de análise a que me refiro tem grande aceitação dentro dos círculos de apoio do Partido Socialista e tem sido partilhado por muitos dos seus membros mais influentes. Trata-se de considerar que - pese embora o Partido Socialista possa ter cometido erros evitáveis e tenha responsabilidades próprias - a causa fundamental da perda de sustentação eleitoral se encontra na forma como este se teve de debater com dois choques exógenos de grande impacto: a pandemia e o choque inflacionista. Ainda que o Partido Socialista tenha feito o melhor ao seu alcance para reagir a estes dois eventos e mitigar os seus efeitos - prossegue a tese - as inevitáveis consequências sociais e económicas que os acompanharam foram interpretadas pelo eleitorado como responsabilidade do partido responsável pelo governo, conduzindo à sua erosão eleitoral. Um dos influentes proponentes desta tese é Porfírio Silva, que escreve na sua página de Facebook (aqui):
“Os erros políticos foram, no essencial, empurrados por duas crises absolutamente extraordinárias: a pandemia de Covid-19 e a crise inflacionária causada pela invasão russa da Ucrânia. Qualquer uma dessas crises são de uma proporção astronómica em relação à "vida normal", ultrapassam qualquer coisa que estivesse nos termos de comparação da maioria das pessoas vivas por cá - e, e este ponto é essencial, são duas crises que em nada podem ser imputadas à acção dos portugueses ou dos nossos governantes. É fácil apontar erros à forma como reagimos a estas crises, mas, quando olho para qualquer um dos críticos, não vejo razão para acreditar que teriam feito melhor na resposta”
Este parece um diagnóstico de muito difícil sustentação. Tomemos o exemplo da pandemia. Tratou-se, inquestionavelmente, de um momento traumático para o país, mas não é evidente esse trauma se tenha transmitido à erosão política do governo. Momentos de catástrofe inesperada são, na verdade, tal como as guerras, períodos de estímulo de sentimentos de unidade nacional que reforçam, no lugar de diminuirem, o apoio governamental. A isso ajuda, deve reconhecer-se, que Portugal tenha tido um desempenho satisfatório na resposta à pandemia, com um SNS que mostrou conseguir resistir, mesmo apesar das debilidades acumuladas. Quando olhamos para dados objetivos, não há sinais evidentes dos efeitos da pandemia na popularidade do governo e do Partido Socialista - afinal, a ministra da saúde tornou-se uma das mais populares ministras do governo e as sondagens não mostraram nenhuma queda significativa do Partido Socialista nesse período. Mais importante, a maioria absoluta, de Janeiro de 2022, foi obtida num quadro em que as feridas da pandemia e o seu eventual impacto político estariam potencialmente muito mais presentes do que hoje. De onde emerge a questão: como se pode argumentar de modo convincente que a pandemia foi um fator relevante, quando o partido de governo alcançou uma maioria absoluta num contexto em que os efeitos desse fator exógeno se deveriam sentir de forma mais aguda do que no presente?
Concedo que a responsabilidade do choque inflacionista admite uma maior liberdade de interpretações. É inequívoco que esse choque teve um elevado impacto no bem-estar das classes trabalhadores, fruto dos efeitos imediatos na descida dos salários reais e na subida drástica de encargos com empréstimos à habitação. Para isso muito contribuiu uma narrativa desajustada do governo sobre as origens da inflação e as consequentes respostas de política pública a seguir. Recordemos que Fernando Medina defendeu a tese de que a resposta dos salários à subida dos preços aceleraria a inflação, reproduzindo a tese da espiral salários-preços como potencial mecanismo de propagação. Como muitos argumentaram no campo da esquerda e a realidade demonstrou, essa tese não tinha qualquer sustentação (para uma revisão crítica sobre o debate internacional e nacional sobre o choque inflação, ver aqui). No entanto, também aqui os dados revelam que Portugal não se posiciona mal internacionalmente. Os salários foram mais rápidos a compensar as perdas reais do que na maioria dos restantes países europeus (ver aqui). Os fatores que podem explicar este melhor desempenho relativo ainda estão por explorar. Mas fatores como a inversão da narrativa governamental sobre a necessidade de elevar salários, a menor exposição ao choque energético adverso fruto do isolamento do mercado ibérico de eletricidade ou mesmo o elevar da posição negocial dos trabalhadores por se atingir uma barreira de expansão de setores trabalho-intensivos após anos de expansão acelerada podem ser fatores relevantes. Para este texto, estes fatores são apenas pistas. O essencial a reter é que se afigura também pouco provável encontrar na resposta a este choque exógeno condições particularmente desfavoráveis para o desempenho eleitoral.
Neste texto, pretende-se argumentar que há outras causas mais relevantes para explicar a perda de sustentação eleitoral do Partido Socialista. Essas causas incluem, por um lado, fatores exógenos não circunstanciais - isto é, que não correspondem a movimentos súbitos e inesperados, mas antes a reconfigurações institucionais que lenta mas sustentadamente inclinaram o tabuleiro político em desfavor da esquerda. No entanto, duas das causas com maior responsabilidade na degradação do suporte popular ao governo são traços estratégicos da governação do Partido Socialista, que situam no território da discricionariedade de quem governa. Por outras palavras, estas causas não foram suscitadas por fatores externos que obrigram o governo a tomar decisões imperfeitas ou subótimas - foram causas geradas por atos que foram consciente e livremente seguidos pelo modelo governativo.
Fatores exógenos não circunstanciais
A democracia portuguesa foi abalada por fatores exógenos muito relevantes nos últimos anos. Não me deterei sobre eles em detalhe, não porque não sejam importantes - são, e muito - mas porque, por um lado, o fim deste deste texto é demonstrar que existem responsabildiades próprias do governo de grande monta, para lá dos choques exógenos circunstanciais ou mais persistentes. Por outro lado, porque existe quem já tenha escrito com propriedade sobre muitos destes fatores, como no caso da última coluna de Ricardo Paes Mamedes no Público (aqui). No entanto, é útil elencar sumariamente, pelo menos, três deles.
O primeiro prende-se com o surgimento de elevados montantes de financiamento dos setores da burguesia nacional para o desenvolvimento de projetos de direita capazes de recuperar o voto de setores jovens e das camadas populares, numa estratégia de discriminação perfeita e maximizadora. A IL e o instituo +Liberdade, para vender aos jovens licenciados a ideia da carga fiscal como principal problema nacional. Convencê-los de que cortar impostos é uma sedutora estratégia win-win: mais dinheiro no bolso e um bypass para a convergência e o desenvolvimento, além de ainda se poder manter saúde e educação universais, privadas, mas para todos. Ninguém que reflita acredita na sustentabilidade deste modelo, mas a reflexão é muito toldada por fantasias que apelam ao ganho individual enquanto amnistiam a consciência com a promessa de que a sua ganância pessoal não tem efeitos sociais negativos. O Chega, por seu lado, para se dirigir uma amálgama de camadas populares, abstencionistas, saudosistas que votavam PSD/CDS e votos de protesto não ideológico, mobilizando a partir do racismo estrutural e de uma ideia vaga mas agregadora de combate à corrupção. Uma atomização da direita maximizadora, por oposição ao que sucede à esquerda.
O segundo prende-se com uma recomposição dos meios de comunicação descentralizados e não mediados a que a esquerda tardou em chegar. A forma como a geração que nasceu no início do século XXI forma preferências a partir de uma rede de youtubers e pessoas com influência nas redes sociais tardou a ser compreendida por esta área política. A assimetria dos padrões de voto nos segmentos 18-24 e 24-35 - amiúde representados em estudos de opinião - é bem representativo de como há uma grande e óbvia descontinuidade de preferências de voto entre grupos etários muito próximos, cuja explicação pode residir em processos de consumo de conteúdos digitais muito diferentes. Os números atingidos pelas entrevistas de Ventura a alguns youtubers - na ordem das centenas de milhares - ilustra bem como este é campo é um verdadeiro ângulo morto na análise de muitos setores politicamente esclarecidos mas pouco despertos para estas novas dinâmicas geracionalmente concentradas.
Por último, houve também uma reconfiguração sem precendentes no panorama da imprensa escrita e televisiva em Portugal. Fontes de financiamento de proveniência semelhante às que ajudaram à criação e solidificação dos novos projetos políticos intensificaram a criação de verdadeiros projetos de mecenato ideológico, ora com projetos ancorados à direita mas mais estruturados (caso do Observador), ora com verdadeiros pasquins, sem o menor respeito por básicas critérios de qualidade jornalística (caso das novas linhas editoriais do Sol e do I, bem como do semanário Novo). Quanto a este último fator pode, no entanto, questionar-se a sua classificação como fator exógeno não contrariável por uma ação atempada do governo, já que há muito os setores de esquerda alertam para os perigos de deixar a imprensa exclusivamente ao sabor do financiamento dos projetos privados, num contexto em que o setor é cada vez menos sustentável financeiramente, e, com efeito, fica mais permeável a projetos empresariais cujo real objetivo não é a rentabilidade financeira, mas exclusivamente a capacidade de enviesar o espaço público.
Causas fundadas na discricionariedade da estratégia governativa
Os aspetos acima referidos foram, inquestionavelmente, de grande importância para a criação de uma ambiência desfavorável, não apenas ao Partido Socialista, mas a toda a esquerda. Porém, o centro desta publicação é demonstrar que há causas da queda do apoio político ao partido de governo que decorrem diretamente da sua ação discricionária, sem a influência de qualquer forte condicionalismo externo.
O estreitar das possibilidades transformadoras de uma social-democracia de baixa intensidade por meio do favorecimento de um regime de desigualdade baseado na propriedade
O modelo de desenvolvimento português pós-Troika, assente no turismo e em serviços trabalho-intensivos de grande concentração territorial, amplificou um conjunto de fatores externos seculares que têm aumentado os preços da habitação e das rendas à escala global. Isso fez com que Portugal se destacasse interncionalmente como um dos países em que os preços da habitação e das rendas tiveram maior crescimento relativo face aos aumentos de salários reais. Para isto contribui a criação de fontes de procura exógena muito forte por habitação para fins de valor de uso não primário, como no caso da satisfação da procura turística de curto-prazo, na atração de nómadas digitais ou na compra de casa por residentes não habituais. Estas fontes de procura foram, ora não regulamentadas ou tardia e timidamente regulamentadas pelo governo, ora ativamente promovidas, como no caso do regime dos vistos gold, no tratamento fiscal mais favorável do Alojamento Local ou na flat tax para residentes não habituais. Esta interseção do modelo de desenvolvimento com o mercado de habitação criou um novo regime de desigualdade baseado na propriedade assente numa lotaria com base na posição à partida. Aqueles que detinham mais do que uma habitação puderam beneficiar do impulso rentista deste modelo e capitalizar a partir dos seus ativos imobiliários. Aqueles que apenas tinham habitação própria ficaram isolados dos efeitos externos mais negativos, mas não beneficiaram ativamente do novo regime. Por último, os setores que não tinham propriedade à partida, isto é, as camadas sociais (sobretudo as mais pobres) que não tinham acedido à propriedade imobiliária no seu período de expansão na década de 90, acrescidos das novas gerações chegadas ao mercado de habitação. Para estes, houve uma severa deterioração da sua capacidade de concretizar o direito à habitação, manifestada de diferentes formas. Para aqueles já no mercado de arrendamento, com a absorção de uma proporção cada vez maior do seu salário com encargos relacionados com habitação e/ou com a deslocação para áreas mais periféricas, com implicações muitas vezes traumáticas no corte de relações sociais e de vizinhança. Para os recém-chegados (muitos jovens) com o adiar sucessivo da saída da habitação parental ou uma grande pressão dos custos habitacionais sobre os seus primeiros salários (para uma leitura adicional sobre o problema da habitação ver aqui um artigo da República dos Pijamas)
Este regime de desigualdade reveste-se, desde logo, de uma ironia trágica. Afora as diferentes interpretações de estratégia socialista de que diversos campos da esquerda se podem legitimamente reclamar, parece incontestável que uma das críticas centrais ao capitalismo de quaquer movimento socialista é o modo como este sistema distribui rendimento a partir de títulos de propriedade à partida que não refletem mérito na sua acumulação primária, enquanto uma vasta massa assalariada está condenada a uma posição de subjugação económica com ganhos muito menores. Ora, foi exatamente o Partido Socialista a promover este regime de desigualdade assente na rentabilização de capital imobiliário (rentista/não-produtivo), enquanto punha em causa o direito ao acesso à habitação, cuja preservação deveria ser o primeiro pilar de uma visão de esquerda que considera que esferas da vida humana - como o direito a um teto - não devem estar submetidas ao imperativo de exclusão mercantil baseado no preço, mas antes na provisão comunitária. No fundo, a visão de que nenhum direito universal de cidadania básico (saúde, educação, habitação) pode ser ameaçado pela preservação e valorização dos direitos de propriedade. Esta violação da mais básica marca de uma política de esquerda não pode ser menosprezada.
Mas, talvez mais importante, é perceber a forma como este regime estreitou o potencial de apoio às transformações incrementais que a social-democracia de baixa intensidade do Partido Socialist procurou implementar. Por social-democracia de baixa intensidade entende-se a visão centrista que o Partido Socialista cultivou historicamente na sua ação governativa: favorecer pequenos ganhos incrementais para as classes populares que o apoiam, a par da salvaguarda do essencial dos interesses da classe capitalista nacional. Isto é, explorar ganhos para as classes populares mas sempre na margem não conflitual do capitalismo. Nesta governação, tentou implementar esta estratégia através de medidas como o aumento tímido da contratação coletiva, o aumento do salário mínimo ou políticas de pendor universalista nos transportes públicos, enquanto se mantinha o essencial da legislação laboral da Troika e se promovia a retórica das startups e da internacionalização dos serviços de turismo para agradar às novas e velhas burguesias nacionais.
O problema é que esta estratégia aplicada ao capitalismo rentista é muito mais estreita do que o habitual.Pode, por exemplo, pensar-se no caso de uma família no mercado de arrendamento ou de um jovem que trecém-chegado ao mercado de trabalho com expetativas de emancipação familiar. Mesmo que a capacidade de ter emprego seja muito superior à registada nos períodos de elevado desemprego da Troika, a capacidade de ter uma vida independente deteriorou-se para os cidadãos sem propriedade à partida. Os dados estatísticos médios podem revelar-se uma grande ilusão. Porquê? Porque indicadores como o Índice de Preços no Consumidor (IPC) usam a proporção média gasta pelas famílias em habitação como ponderador. Num país em que muitos agregados têm casa própria totalmente paga ou com encargos financeiros com empréstimo já muito baixos, estes ponderadores são muito assimétricos entre grupos sociais e etários. Assim, um jovem, por exemplo, pode ver o seu salário médio real subir - se medido, como habitual - pela evolução do IPC, mas tal pode, na verdade, corresponder a uma severa perda real do seu rendimento, se enfrentar rendas que duplicam ou encargos com empréstimos que explodem, para uma proporção muito superior ao valor médio registado nesse deflator. Este é, aliás, um dos principais problemas do crescimento económico desta crise. Por gerar ganhos e perdas relativos baseados na propriedade à partida, tem efeitos sociais particularmente assimétricos e que se transformam em verdadeiros ângulos mortos para uma análise política amiúde guiada por médias. Este exemplo ilustra bem o problema da estratégia incremental do Partido Socialista num contexto de um modelo de desenvolvimento que exponencia os ganhos rentistas .Ganhos salariais reais que seriam, noutro contexto, tomados como avanços do bem-estar são mais do que absorvidos pela ascensão do rentismo imobiliário, derrotando o modelo historicamente prosseguido pelo Partido Socialista. Aqui contam-se, sobretudo, os jovens, já que, por definição, são aqueles que com mais probabilidade chegam ao novo enquadramento económico sem propriedade à partida. Os mesmos jovens que, certamente não por acaso, se tornaram mais permeáveis ao sedutor discurso de uma direita muito bem financiada para chegar à sua frustração.
Mas não foi só na política salarial que o rentismo promovido pelo novo modelo de desenvolvimento nacional boicotou a social-democracia de baixa intensidade. Os problemas também se estenderam de forma aguda à sustentabilidade dos serviços públicos. Note-se que os pilares do funcionamento do Estado, em sentido lato, e do Estado Social, em particular, carecem da capacidade de uma fácil mobilidade de profissionais no território. É necessário alocar, entre outros, enfermeiros, médicos, professores, polícias no território, de forma a corresponder à evolução das necessidades localizadas. Essencial para essa fácil mobilidade é a capacidade desses profissionais acederem à habitação. Esta capacidade ficou severamente comprometida com a evolução da crise da habitação. Intensificou-se o descontentamento profissional com salários reais que caíam abrutamente, sobretudo para profissionais em início de carreira, com maior probabilidade de necessitar de se socorrer do mercado de arrendamento. No limite, as posições começaram a ser recusadas. Sucederam-se falhas inauditas na capacidade de alocação de professores. A cobertura por médicos de família (eterna promessa eleitoral do Partido Socialista) deteriorou-se. Não por acaso, é na Área de Metropolitana de Lisboa e no Algarve onde a cobertura de médicos de família é mais reduzida. É, pois, urgente entender que no centro da crise do Estado Social se coloca na forma como o rentismo exerceu uma ação predatória sobre o rendimento dos seus profissionais, insuflando descontentamentos e causando a necrose da sustentabilidade do sistema.
O contínuo subfinanciamento dos serviços públicos e os truques orçamentais
A segunda causa é complementar ao último aspeto descrito no ponto anterior. Como se referiu, o Estado Social enfrentou um forte choque causado pelos efeitos externos do rentismo na sua sustentabilidade. Mas estes efeitos foram ainda agravados pela estratégia orçamental seguida pelo governo.
Durante grande parte da legislatura o governo insistiu na fantasia de que, para a sua sustentação política, era suficiente repetir o mantra do “virar a página da austeridade” e esperar que a recuperação do emprego a par da subida do salário mínimo solidificassem o seu apoio social. Pelo contrário, negligenciou os recursos orçamentais alocados a um Estado Social que já estava no limite das suas capacidades, fruto dos anos de austeridade anteriores. Os brilharetes orçamentais sucederam-se, com excedentes orçamentais muito para lá do que seria necessário e avisado para um governo que deveria estar apostado no reforço das funções sociais do Estado. A consolidação orçamental extrema foi alcançada quer explicitamente, com orçamentos que impunham taxas de crescimento de despesa real nos serviços públicos abaixo do crescimento do PIB durante vários anos, como também de forma implícita, a partir dos sucessivos desvios negativos entre os valores orçamentados de despesa e investimento públicos e a sua execução (ver um informativo gráfico do Vicente Ferreira aqui). Este sucessivo e insidioso truque viria a estar, aliás, na base do colapso do apoio da esquerda parlamentar ao governo, que precipitaria as eleições em 2022.
Isto é, além das pressões que o Estado Social estava a sofrer por meio da crise da habitação, viu os seus problemas reforçados por um governo que dedicou sucessivamente recursos orçamentais deficitários a esses serviços, conduzindo a um evitável descontentamento desses profissionais e a uma evitável degradação desses serviços.
Conclusão
Este texto pretendeu clarificar que, embora existam fatores exógenos circunstanciais e persistentes de grande poder explicativo, o essencial da degradação do apoio governativo pode ser explicado por culpas próprias da estratégia governamental.
Em democracia, há poucas coisas mais devastadoras do que a perceção de uma regressão nos níveis de bem-estar. Ao criar uma atmosfera em que muitos setores da população sentiram que as suas condições de desenvolvimento autónomo - pela capacidade de ter uma casa - e dos serviços públicos para si e para os seus filhos seriam piores do que no passado, o governo criou o ensejo perfeito para largos setores ficarem vulneráveis aos cantos de sereia de uma direita emergente. Não porque essa direita tenha um discurso sólido alternativo ou soluções reais para esses problemas (como já foi demosntrado aqui) mas porque, para setores não politizados com sentimento de regressão social, a ideia de alternativa - qualquer que seja- se torna num desejo que não olha a racionalidades.
A responsabilidade deste quadro é do Partido Socialista e das suas escolhas em matérias de desenvolvimento, postura política em relação ao rentismo imobiliário e fascínio político pelo infundado conservadorismo orçamentalde Bruxelas. O preço que que o Partido Socialista pagou - e que toda a democracia paga com o franquear de portas aos novos vampiros - é da sua plena responsabilidade, mesmo que admitamos todos os outros fatores. Foi a sua dissociação entre a força do verbo e a tibieza das ações que aqui nos trouxe. Responsabilidade daqueles que bateram com a mão no peito com o legado de Arnaut enquanto subfinanciavam o SNS. Daqueles que celebraram os feitos da escola da Abril, enquanto deixaram que mais e mais turmas não tivessem professores. Daqueles que falaram do direito à habitação enquanto promoveram um modelo de desenvolvimento que o ameaçou ativamente. Não busquem redenção no imprevisto. Nem tentem combater o fascismo com apelos vagos a valores. A esquerda antifascista, de uma resistência coerente, é aquela que alinha a ação e o verbo. Só assim poderemos caminhar juntos. Pela democracia, contra o fascismo.
Subscrevo praticamente tudo (em bom rigor subscrevo tudo, talvez apenas dê um pouco mais de relevância ao que tu chamas "fascínio" por Bruxelas). E preocupa-me o avanço da direita (sobretudo da populista) no eleitorado jovem.
Bela análise. A viragem à direita do PS tornando-se socialista liberal torna ainda mais irónico o mantra adoptado pela direita que se foi/vai radicalizando de apelidar o governa de esquerdista.