O tema da habitação coloca um grande embaraço narrativo à direita política em Portugal. Em grande medida, porque a atuação do Partido Socialista - com o privilégio da alocação de mercado e do direito incondicional à propriedade sobre a salvaguarda da habitação enquanto direito universal - não foi fundamentalmente distinta do que teria sido a atuação da direita. É uma direita órfã do seu próprio programa. Desesperada, procura negar este diagnóstico a partir da dramatização das pequenas regulações aplicadas já muito tardiamente pelo Partido Socialista - como no caso das quotas de Alojamento Local - mas tem dificuldade em demarcar-se do essencial da estratégia seguida.
Contudo, perante a fratura que a habitação coloca na sociedade e as dificuldades agudas sentidas pelo eleitorado jovem que pretende atrair, a direita sente a necessidade de ter um discurso. Para se evadir deste desconforto, socorre-se do seu último recurso, a sua estratégia derradadeira de fuga para a frente, num artifício que se vem mostrando, infelizmente, tão pouco sério quanto eficaz: coloca as responsabilidades na política fiscal excessiva e nas regulações do Estado, cuja diminuição é sempre a pedra filosofal capaz de resolver tudo em que toca. O fulcro do argumento é que a grande constrangimento ao desenvolvimento do setor da habitação é a sua oferta ser forçada a responder muito lentamente aos incentivos do mercado, sinalizados pela variação ascendente dos preços, fruto dos impostos elevados e das regulações de construção. A alegoria estafada é sempre a mesma: o mercado tudo resolveria, mas o Estado, o monstro, o Leviatã, oprime com o seu peso a utopia do capitalismo libertário.
Este discurso e os truques vezeiros de que se faz acompanhar revelam fragilidades confrangedoras, que não mereceriam grande debate, não fosse a sua permeabilidade no espaço público. Como se verá, são facilmente refutados usando evidência empírica. Mas é mesmo possível rebatê-los parcialmente sem olhar para os dados, dando um passo atrás, e, num nível de abstração superior, fazer um apelo exclusivo à lógica formal.
Em termos estritamente lógicos, só podemos procurar explicar eventos dinâmicos através de variáveis que apresentam algum grau de variação. Isto é, não podemos explicar um quadro que se altera com variáveis que permanecem constantes. Ora, é precisamente isto que a direita pretende fazer. A crise da habitação, com a sua magnitude atual, é um fenómeno novo. No entanto, os quadros fiscal e regulatório não tiveram nenhuma alteração significativa no sentido de o tornar mais onerosos para os investidores e construtores imobiliários ao longo das últimas décadas. Nesse sentido, o argumento de que a baixa expansão da oferta no presente comparada com o que se verificava em períodos anteriores se deve à fiscalidade ou às regulações está condenado a uma inconsistência lógica: como é que um quadro fiscal e regulatório constante poderia explicar uma alegada deterioração das condições de expansão da oferta? Trata-se de um discurso onde é logicamente impossível chegar a estas conclusões, mesmo se aceitarmos as suas premissas de partida.
No domínio empírico, há dois dados que permitem facilmente refutar a narrativa da direita. A primeira é que, à semelhança do que já foi argumentado por vários autores, Portugal não tem um problema de oferta de habitação face à evolução dos seus habitantes. O rácio entre o número alojamentos familiares e famílias manteve-se estável entre 2011 e 2021 (ver aqui). Nesse sentido, o problema não é a oferta mas a distribuição de propriedade dessa oferta e da sua divisão entre satisfação de usos primários e secundários de habitação.
O outro, decisivo, respeita à comparação internacional das elasticidades estimadas da oferta de habitação. Uma elasticidade mede a reação da oferta de habitação a variações de preço. Num inspuspeito relatório do departamento europeu do FMI (ver aqui), consta o gráfico reproduzido abaixo, onde se pode verificar que Portugal apresenta uma elasticidade de oferta de habitação muito superior a outros países comummente apontados pelo seu exemplo de liberalismo, nomeadamente a Roménia e a Holanda. O que isto significa é que, em Portugal, a resposta da habitação em face da subida dos preços é consideravelmente mais rápida, deitando por terra os argumentos dos que apontam o valor dos impostos e o quadro regulatório como os grandes obstáculos nacionais à resolução desta crise.
O problema, em Portugal, não é o dinamismo da oferta privada de habitação. Nem tão pouco a ausência de mercado livre, como a direita gosta de arvorar. Pelo contrário, foi o mercado livre que nos trouxe aqui. Foi o mercado livre que criou um conjunto de choques exógenos que provocaram a dissociação entre os fundamentos internos dos preços da habitação e das rendas - a evolução dos salários e da população - e os valores de mercado. Entre estes, conta-se a procura de habitação para fins de ativos de portefólio (no contexto de atuação dos fundos de investimento), o investimento dos residentes não-habituais ou a substituição de habitação que tinha por fim o valor de uso primário de habitação por valores de uso secundário, em particular a transferência de arrendamento de longa-duração por Alojamento Local. O mercado funciona e a oferta responde. Só não responde aos segmentos a que deveria respoder: como o mercado é “livre”, são beneficiados os projetos de luxo, com maiores margens de retorno, que se destinam, na sua maioria, a investidores estrangeiros, deixando de fora as necessidades de habitação primária das camadas populares.
A narrativa da direita em relação à habitação está, pois, algures entre a ausência de discurso, a inconsistência lógica e a mentira. Só é possível responder à atual crise habitacional com a celeridade que a emergência social impõe com a ousadia de pôr em causa a alocação de mercado e o imperativo do mais forte que essa consagra. Nenhum direito de propriedade se pode sobrepor a um direito constitucional e humano: o de ter um teto. Isso exige a tomada de um conjunto de posições corajosas, onde se conta a limitação da aquisição de habitações por residentes não habituais, um controlo estrito do alojamento local, um controlo estrito da ação dos fundos de investimento e a intervenção direta do Estado sobre as casas desocupadas. Só esta ação imediata, a par de uma campanha de promoção de habitação pública (de escala e celeridade muito superior à que até aqui se verificou) são soluções substantivas para os problemas que atravessamos.
(Esta publicação é um pequeno segmento de um artigo mais longo sobre os fundamentos da crise da habitação em Portugal, a ser publicado em breve).
Caro Diogo,
Aproveitando o último parágrafo para acrescentar uma perspectiva jurídica, vale a pena recuperar um tema que já foi objeto de um projeto de lei na AR em 2023 e que voltou à baila nas últimas semanas por ter sido abordado em diferentes frente-a-frente no caminho para as eleições de 2024. Trata-se da proposta de restrição de compra de casa por não residentes e da sua eventual incompatibilidade com o direito da União Europeia, no que respeita aos direitos dos nacionais de Estados-Membros.
A incompatibilidade que tem sido propalada não é exatamente assim. É certo que um dos fundamentos da proibição de discriminação pelo direito da UE é baseado em razão da nacionalidade. Ou seja, não se pode tratar desfavoravelmente um cidadão europeu em face de um cidadão nacional apenas por esse motivo. No entanto, não está de todo em todo vedada a restrição quanto à residência. Isto aplica-se a todas as vertentes do mercado interno e as chamadas "quatro grandes liberdades" (circulação de pessoas, bens, serviços, capitais e estabelecimento).
Assim, é perfeitamente admissível - e há imensos exemplos - de leis nacionais que criam situações mais favoráveis para os residentes (sejam eles nacionais ou cidadãos de outro Estado-Membro) em detrimento daqueles que não vivem no país. O princípio só se aplica se a situação dos envolvidos na comparação for objetivamente semelhante. Se não o for, não há direito à igualdade de tratamento.
Poderá, por isso, ser um fundamento legítimo, à luz dos critérios do direito da UE, a distinção entre uns e outros. Basta que se encontre um direito a preservar como contrapeso (interesse público em haver habitação para os nacionais, por exemplo. Ou preservação cultural e histórica das baixas de Lisboa e Porto. Ou mesmo uso útil da casa como mercadoria. Ou ainda mera necessidade: os residentes precisam mais de ter onde viver do que os não residentes que são turistas ou não habituais).
Bem sei que haverá opiniões jurídicas para todos os gostos. Esta é mais adequada para defender o que consideramos melhor para Portugal. A medida é defensável, com bons argumentos, bem fundamentados.
De resto, o próprio Tribunal de Justiça da União Europeia, em Grande Secção, já o disse no acórdão Cali Apartments SCI, de 22 de setembro de 2020, nos processos apensos C-724/18 e C-727/18.
Passo a citar: a Diretiva 2006/123, relativa aos serviços do mercado interno aplica-se "a uma regulamentação de um Estado‑Membro relativa a atividades de locação, mediante remuneração, de imóveis mobilados destinados a habitação a uma clientela de passagem que aí não fixa domicílio, efetuadas de forma reiterada e por períodos de curta duração, tanto a título profissional como não profissional".
Além disso, as suas normas devem ser interpretadas "no sentido de que uma regulamentação nacional que, por razões que visam garantir uma oferta suficiente de habitações destinadas à locação de longa duração a preços acessíveis, sujeita certas atividades de locação, mediante remuneração, de imóveis mobilados destinados a habitação a uma clientela de passagem que aí não fixa domicílio, efetuadas de forma reiterada e por períodos de curta duração, a um regime de autorização prévia, aplicável em certos municípios nos quais a tensão sobre as rendas é particularmente acentuada, é justificada por uma razão imperiosa de interesse geral atinente à luta contra a escassez de habitações destinadas à locação, sendo proporcionada ao objetivo prosseguido, uma vez que o mesmo não pode ser alcançado por uma medida menos restritiva".