Talvez, só talvez
A geopolítica deixa de ser um detalhe quando o espectro das suas consequências nos bate à porta.
No contexto do debate em torno das iminentes eleições presidenciais norte-americanas, muitos apodaram de sectários e radicais infantis aqueles que, estando à esquerda no contexto português, confessaram a sua dificuldade em escolher entre os candidatos presidenciais norte-americanos, tomando a abstenção como uma opção legítima, num cenário hipotético em que fossem chamados a escolher.
Quem assim procedeu preferiu ignorar ou secundarizar os exatos termos em que essa dúvida era formulada. Os que expressaram reticências não o fizeram por não reconhecerem diferenças em matérias de política interna - estas são evidentes em amplas áreas como os direitos migratórios ou as leis laborais -, nem por não saberem que aí estão certamente mais próximos de Kamala do que de Trump . Pelo contrário, fizeram-no por considerarem que a postura a cumplicidade norte-americana com o genocídio de palestinianos perpetrado por Israel colocava a administração de Biden e Harris num patamar de rejeição absoluta, impossível de se relativizar. Mesmo para os que, à esquerda, reconhecem que na esfera da ação imperialista dos Estados Unidos qualquer escolha eleitoral é e sempre foi feita entre males menores, estando, com efeito, dispostos a fazer concessões pragmáticas à luz desse reconhecimento noutros contextos, o genocídio de Gaza e a ameaça belicista de Netanyahu apresentavam-se como algo não relativizável. Afinal, com que leveza de consciência se vota em quem teria na ponta da sua caneta a capacidade de impedir a morte de dezenas de milhares de cidadãos palestinianos e prescindiu de o fazer?
Um exemplo deste posicionamento moralizador perante a esquerda à sua esquerda foi-nos oferecido por Porfírio Silva, atual diretor do Ação Socialista e destacado quadro do PS, na sua página de Facebook (aqui):
“Nestas circunstâncias, tirando os que acham que tanto faz que ganhe Trump como Kamala (a esses não há muito mais a dizer), alguma noção das realidades exigir-nos-ia a humildade de não querer julgar a campanha de Kamala pelo programa que nós desejaríamos apresentar ao eleitorado e nunca tivemos coragem para apresentar. A acção política não nos pode pedir que desistamos dos nossos ideais, mas também não pode ser apenas uma lista de desejos.”
Contudo, talvez agora, só talvez, possam querer rever as suas classificações quando essa transigência reiterada pode conduzir a um conflito à escala global de consequências imprevisíveis. Não só para o Médio Oriente, mas para todo o mundo. Daqueles que pode mesmo bater à nossa porta. Dos brancos, dos bons, dos "dos valores". Talvez agora, quando um conflito aberto entre potências nucleares é realidade palpável, a geopolítica já não pareça um pormenor que se varre para debaixo do tapete, à mistura com o sangue de umas centenas de milhares que nasceram no lado errado do mundo. Talvez a geopolítica deixe de ser um detalhe quando o espectro das suas consequências nos bate à porta.
Mas talvez, só talvez. Por conveniência ou incapacidade de análise para ver o óbvio, temo que a maioria permaneça na sua torre de marfim da mitologia de uma ordem liberal internacional, liderada pelos EUA, de direitos humanos como imperativos categóricos. Apesar de uma e outra vez lhes ser demonstrado que tal não existe. Na verdade, percebe-se a resistência: Um mundo em que nós somos os bons e os outros os maus é de grande consolo à consciência.
Até lá, continuarão a frequentar os drinks de final de tarde na embaixada israelita sem que a consciência lhes pese.
P.S. É a segunda vez que critico diretamente posições tomadas por Porfírio Silva em artigos neste espaço digital. Importa, com efeito, esclarecer que nada me move pessoalmente contra o ex-deputado do PS. Sucede apenas que, sendo uma das poucas figuras do Partido Socialista que, no espaço político da sua atual direção, toma posição pública pessoal de forma consistente sobre vários eventos políticos, se transforma num interlocutor privilegiado da discussão pública. Mesmo nas cúpulas dos aparelhos partidários, poucos são o que escrevem abertamente o que pensam. São maioritários os que não pensam, apenas obedecem, ou que, pensando, se reservam a um silêncio instrumental. Honra lhe seja feita, Porfírio Silva não pertence a nenhum destes últimos grupos.