(Este é o primeiro de uma série de quatro textos sobre o tema das presidenciais. Trata-se, pois, de uma reflexão política por fascículos. Reparei recentemente, com mágoa, que a palavra “fascículo” está em vias de extinção na língua portuguesa. Como humano da safra do início da década de 90, posso mesmo ser o representante da última geração que sabe ao que a palavra se refere. Para os mais tenrinhos, a palavra fascículo era reservada para as coleções periodicamente vendidas em papelarias, com frequência acondicionados em vistosos embrulhos de cartão muito maiores do que o objeto que tinham por objetivo embrulhar e podiam abranger os perfis mais variados, desde um livro, até a uma peça de faqueiro, passando por uma peça de réplica de carro de coleção. Com efeito, a minha ambição para esta sequência de textos é que aguardem a próxima parte com a mesma expetativa e aura mística com que uma dona de casa aguardava pela 2ª colher de sobremesa de um faqueiro vendido em fascículos da Planeta DeAgostini na papelaria do bairro. E que, vá, considerem a reflexão política remotamente útil)
O cenário presente
A menos de um ano das eleições presidenciais, a esquerda não enfrenta um cenário auspicioso. A direita, nas suas diferentes matizes, surge hegemónica, ao ponto de ameaçar transformar o momento eleitoral numa disputa entre as suas diversas encarnações. O centro-esquerda, representado pelo Partido Socialista, mostra-se titubeante e sem rumo, imerso num infindo debate interno sobre escolhas de candidatos incapazes de granjear qualquer entusiasmo fora das pequenas bolhas que os sustentam. Entre a ausência de rasgo, carisma e pensamento político de um dos presumidos candidatos e um percurso de pouca lisura republicana do seu opositor - já para não mencionar a incapacidade de se ouvir “qualquer coisa de esquerda” vinda de ambos - o Partido Socialista está já condenado a apoiar um candidato fraco que, sendo incapaz de mobilizar o seu próprio eleitorado, não será decerto a figura necessária para contrapor o ascendente presente da direita neste momento eleitoral. A esquerda, por seu lado, continua expectante. Não tendo surgido até ao momento um nome capaz de federar os setores do eleitorado que constitutem a base sociológica e eleitoral de Bloco e PCP, teme-se que o desfecho mais provável seja cada um destes partidos apresentar um candidato provindo do interior das suas mais diretas estruturas, à imagem do que ocorreu em eleições anteriores. Num clima de refluxo, esta estratégia - anteriormente utilizada por estes partidos como forma de sublinhar a sua posição - é hoje mais arriscada, com potencial para acentuar, ao invés de infletir, a sua trajetória de declínio eleitoral. Se nada de inesperado perturbar a projeção linear a partir do cenário atrás descrito, a esquerda prepara-se para enfrentar um percurso tortuoso a dois tempos: primeiro, atomizada em candidaturas incapazes de alavancar a mensagem dos seus partidos, assistirá a um embate entre as direitas e o centro, sem que consiga marcar os termos em que se faz o debate; depois, condenada a escolher um mal-menor, o qual, no limite, pode mesmo significar um mal-menor entre os candidatos à direita.
A tese
A esquerda deve fazer tudo ao seu alcance para evitar que este cenário se concretize. Tal só será possível se apresentar um candidato com o potencial de mobilização política para definir os termos do debate, triunfar na luta de argumentos e disputar a passagem à segunda volta. Ainda que seja um caminho estreito, existem opções que garantem que esse cenário pode ser politicamente tangível.
O dever de explorar essas opções decorre de uma responsabilidade histórica e da necessidade de não desperdiçar uma oportunidade para readquirir ascendente político. Num contexto onde se avoluma a ameaça fascista, uma esquerda consequente com a sua história não se pode contentar com a apatia e escolher soluções que, embora alinhadas com a sua prática recente, estão condenadas a não ser mobilizadores. Seria declarar derrota sem sequer abrir uma trincheira.
Além disso, descendo do plano dos princípios para um plano mais pragmático, a sua situação de refluxo determina que todas as oportunidades de readquirir iniciativa política não podem ser desperdiçadas. Esta eleição apresenta uma dessas oportunidades, pouco sublinhada até agora: a vulnerabilidade da candidatura apoiada pelo PS abre a possibilidade de uma candidatura forte do espaço à sua esquerda. Uma candidatura sólida, capaz de penetrar em segmentos do eleitorado do Partido Socialista desiludidos com o candidato apoiado por esse partido, pode aspirar a tomar a frente da disputa à esquerda. A possibilidade de uma candidatura da esquerda superar uma candidatura anémica do centro pode ser um momento de ressurgimento para esse espaço político, oferecendo possibilidades para o futuro que superam a estrita ocasião da eleição presidencial.
Para lançar as fundações desta tese, este artigo prossegue em quatro partes: na primeira, procura demonstrar-se como a desmultiplicação da direita em várias candidaturas é o ponto de chegada de um processo longo, fruto de um misto de estratégias em ascensão e declínio na disputa do voto das camadas populares pelas classes dominantes. De seguida, demonstra-se como a ascensão das formas de pendor autoritário, a par dos desenvolvimentos políticos internacionais, irão determinar um leque de temas muito diferente de presidenciais anteriores, exigindo à esquerda a articulação de uma contra-narrativa mobilizadora e popular em torno desses temas. Na terceira parte, demonstra-se como a convergência para o centro, com candidaturas focadas em torno de valores e princípios democráticos mínimos, impede a implementação dessas contra-narrativas e, por conseguinte, se revela contraproducente para um combate eficaz à direita; demonstra-se ainda como essa visão assente no princípio do centrismo como elemento agregador procede de um equívoco sobre o atual comportamento dos sistemas eleitorais. Por último, sugere-se dois nomes que poderiam personificar uma candidatura de esquerda de rutura e abrangente tida como necessária, com potencial para devolver iniciativa a este espaço político e de lhe dar um novo impulso para o futuro.
(Segundo fascículo em breve)