O IVA Zero fez a diferença?
Nota a partir de um estranho material de campanha do Partido Socialista
No contexto desta campanha eleitoral, o Partido Socialista divulgou uma imagem onde procura demonstrar a eficácia do “IVA Zero”, uma medida aplicada pelo Governo de António Costa em abril de 2023. A medida eliminou o IVA num cabaz de bens essenciais, com o objetivo de conter a escalada de preços dos bens alimentares que se fazia sentir.
Em tese, a diminuição de impostos indiretos sobre produtos de primeira necessidade é uma medida que promove justiça fiscal. O argumento segue a lógica explicada em qualquer manual introdutório de Finanças Públicas: como os impostos indiretos têm uma incidência percentual fixa sobre os bens de consumo final, pesam de forma desproporcional no rendimento dos agregados familiares mais pobres. Ao contrário dos impostos progressivos, o esforço relativo não é ajustado em função do nível de rendimento.
Concordando com este ponto teórico de partida, não podia estar mais em desacordo com a leitura linear do gráfico que o PS nos propõe. O que o PS nos quer levar a querer é que a medida se traduziu inequivocamente numa diminuição do custo dos bens essenciais em comparação com outros países que não aplicaram medidas semelhantes. No gráfico, a comparação é feita com Espanha e com a média da Zona Euro. Essa seria uma leitura consistente com os dados do gráfico se a nossa análise se ativesse ao período da amostra após a introdução da medida (abril de 2023). A partir de abril, existe uma evidente descontinuidade, consistente com a aprovação da medida.
O problema desta análise é que ignora que a evolução dos preços dos bens essenciais apresentava uma evolução muito diferente para as três regiões, como o próprio gráfico apresentado pelo Partido Socialista deixa perceber. É possível ver que em janeiro de 2022 o preço dos bens essenciais eram cerca de dez porcento mais baixos em Portugal do que em Espanha e na Zona Euro. Em abril de 2023 - data em que a medida foi aplicada - o preço do mesmo cabaz era já o mesmo nas três regiões comparadas. Após a implementação da medida, o preço voltou ser mais baixo em Portugal, mas com uma diferença relativa face aos outros países semelhante à que existia em janeiro de 2022.
Isto é um problema para a narrativa de um partido de esquerda? Claro que sim. Aquilo que observamos é um Estado que teve de abdicar de receita fiscal - e, por conseguinte, de fundos que poderiam financiar áreas como a saúde, a educação ou as pensões - para acabar exatamente com a mesma diferença relativa. Entretanto, quem beneficiou com esta operação foi, quase por certo, a grande distribuição. Como o choque de custos energéticos foi semelhante ao de Espanha -e menos do que a média da Zona Euro, que inclui muitos países onde choque dos preços devido à Guerra da Ucrânia foi muito mais elevado devido à sua dependência do gás russo - não há nenhum motivo plausível para uma aceleração de preços tão assimétrica face aos seus congéneres europeus que derive diretamente desse choque. Resta-nos como grande potencial fator explicativo um maior poder de mercado de vários operadores do mercado nacional. Como a inflação é, sempre e em todo o lugar, o resultado de um conflito distributivo, o que esta evolução comparada nos leva a concluir é que, no plano da produção e comercialização dos bens de primeira necessidade, os capitalistas portugueses foram capazes de passar uma maior percentagem do aumento dos seus custos para os consumidores.
O que o IVA Zero fez foi apenas corrigir o efeito nos preços desta assimetria de poder, mas com perda fiscal para o Estado. No final, o efeito líquido no cabaz de bens essenciais foi quase nulo. Custa, pois, perceber o tom triunfal com que o PS nos quer fazer crer que “O IVA Zero fez a diferença”.
Resposta a possíveis contra-argumentos
Prevejo que existam contra-argumentos à crítica que dirijo neste artigo. Num exercício de antecipação, permitam-me que lhes responda.
O primeiro contra-argumento pode defender que o Governo fez o possível com os instrumentos que tinha à sua disposição. Como não tinha meios para intervir na evolução assimétrica de preços, teve de intervir pela via fiscal. Assim, argumentam, o sucesso da medida deve ser avaliado em função do que ocorre após abril de 2023, ignorando a evolução de preços anterior.
O problema deste argumento é ver as assimetrias de poder na definição de preços como algo exógeno, sobre o qual o poder público não pode intervir. Ora, este não pode ser o ponto de partida de nenhum partido de esquerda. A grande distribuição é um setor com elevada concentração de mercado e, por conseguinte, presta-se a ter um poder desproporcional na determinação de preços e na sua capacidade de absorver excedente produtivo. O Estado pode e deve intervir. Precisa de, para isso, montar uma infraestrutura que lhe permita monitorizar em tempo real os preços praticados pela grande distribuição e o seu desalinhamento em relação aos choques de custos que enfrenta. Essa intervenção é possível. De resto, foi amplamente sugerida como fundamental no contexto do debate sobre a inflação pós-pandemia. É verdade que essa infraestrutura não existe hoje - em boa medida, porque o Estado abandonou a sua capacidade institucional de planeamento e claudicou perante a ideia de que dispor desta informação é violar a confidencialidade de informação das empresas e interferir ilegitimamente na sua atuação. Ora, essa é uma premissa que não podemos aceitar. Aceitá-la é acabar a defender como triunfo medidas como esta, cujo efeito líquido para os cidadãos foi evidentemente negativo: depois da aplicação da medida, a evolução relativa dos preços foi igual à dos outros países europeus e o Estado tem menos receita fiscal para financiar o Estado Social. Construir essa infraestrutura pública de controlo sobre o poder económico é uma urgência.
O segundo contra-argumento é menos sensato e sofisticado, mas, convenhamos, nos tempos que correm temos sempre de nos dispor a responder a argumentos absurdos. Esse possível contra-argumento verá na minha defesa da monitorização da definição de preços da grande distribuição uma obsessão esquerdista e totalitária com o planeamento e controlo dos mecanismos de mercado. Ora, este argumento não faz qualquer sentido. Em primeiro lugar, porque ser de esquerda ou, mais concretamente, ser socialista, não tem nenhuma relação direta com a posição que cada um tem acerca da importância dos preços como mecanismos de alocação. Socialismo é tudo acerca de estender a democracia à propriedade e à gestão: não tem nenhuma relação com o mecanismo de preços. Há cerca de 90 anos, Oscar Lange lançou as fundações analíticas para uma economia socialista de mercado, onde os preços tinham um papel determinante na alocação. Da mesma forma, boa parte do debate socialista no século XIX não atribuía grande centralidade ao planeamento central. A associação entre socialismo e planeamento central advém da relevância que este último apresentou na União Soviética e nas economias que seguiram o seu modelo de socialismo. Do ponto de vista económico, esse modelo apresentou méritos, mas também muitos deméritos. Este que vos escreve não tem qualquer reticência em assumir que uma das grandes lições a retirar das experiências de implementação do socialismo no séc. XX é que a subvalorização do mecanismo de preços como forma de transmissão de informação num sistema económico é um erro; e que um socialismo do séc. XXI tem de articular uma ampla reestruturação da propriedade e da riqueza com mecanismos de planeamento, mas deve deixar aos preços a centralidade na alocação de recursos.
No entanto, este debate não tem nada que ver com a discussão sobre a regulação dos preços da grande distribuição. Por vezes, convém recordar aos defensores do mercado a todo o custo que, mesmo os teoremas de bem-estar económico extraídos a partir da economia neoclássica nos asseguram que os mecanismos de mercado resultam numa alocação eficiente, se e só se, operarem em concorrência perfeita. Isto é, mesmo se não existir uma preocupação com justiça social, a livre definição de preços por setores com grande poder de mercado conduz a resultados ineficientes. Um controlo mais apertado da sua operação não é uma medida socialista, estatizante ou particularmente de esquerda: deveria ser uma medida básica de regulação de uma economia de mercado, mesmo para aqueles que, à direita, apenas se dizem focar na sua eficiência. O problema, bem sabemos, é que, na sua maioria, não são defensores do mercado em termos abstratos: são defensores dos muitos poderes que capturam esse mercado e o transformam num jogo viciado.
A moral deste artigo num parágrafo
Uma social-democracia que prescinde de disputar o poder que advém da propriedade está condenada a falhar na sua tentativa de melhorar a justiça social e os resultados distributivos de forma efetiva. Fica, com frequência, amarrada a um jogo de aparências, da qual a defesa do “sucesso” do IVA Zero é apenas um exemplo evidente.