Encontro-me a recolher elementos para um texto que prometo publicar sobre os desafios da política europeia para a esquerda e o discurso dos seus principais intervenientes.
Ontem, antes de me deitar, e literalmente em menos de um minuto, consegui coligir duas declarações de Marta Temido que seriam capazes de abalar de forma definitva a credibilidade da sua candidatura, fosse o nosso debate político assente na busca de um escrutínio de coerência das propostas substantivas dos candidatos.
Na primeira dessas declarações, Marta Temido defende que “todos os países europeus devem juntar-se para o reconhecimento do Estado da Palestina”. Num momento em que a conivência do Ocidente e dos “nossos valores europeus” - até dá vontade de esboçar um sorriso, não dá? - com as ações do Estado de Israel se tornaram eleitoralmente incomportáveis, até para o centro-esquerda mais Atlantista e alinhado com a geopolítica norte-americana, é uma posição confortável de se apresentar. Contudo, uma política fundada no mínimo respeito pela coerência deve recordar ao Partido Socialista que ainda no ano passado votou ao lado de toda a direita na Assembleia da República contra o reconhecimento do estado palestinano com que hoje se mostra tão solidário. Já para não referir o facto de ser abrigo, sem qualquer vislumbre de incómodo, para verdadeiros transmissores de propaganda sionista no debate nacional, como é o caso de João Soares.
Numa outra declaração, proferida no Podcast de Daniel Oliveira, Perguntar não Ofende, quando confrontada sobre as diferenças da sua candidatura face à da AD, apressou-se a dizer que é a favor da descida das taxas de juro por parte do BCE. Ora, trata-se de mais uma declaração curiosa, já que, mantendo o PS o apoio inequívoco à independência do BCE perante o Parlamento Europeu, aquilo que a candidata Marta Temido acha ou deixa de achar sobre política monetária está fora da esfera de ação do que o Partido Socialista acha que deve ser o mandato de um deputado europeu. Peculiar esta ideia de se dar uma opinião sobre um tema sobre o qual se considera ter o dever de não opinar. Ou melhor: sobre o qual se pode opinar, desde que essa opinião seja inconsequente.
Tento ser construtivo, evitar ares de sobranceria e levar Marta Temido a sério. Mas assim fica muito difícil. Tudo o que vejo é uma candidata que, até há escassos anos, era um dos muitos quadros técnicos que orbita no aparelho de Estado em torno dos partidos de centro e que, por um ato de improbabilidade histórica, se tornou uma ministra de destaque num tempo de exceção. Mas falar de política europeia exige um pouco mais do que pôr um ar grave e solene e falar da importância de lavar as mãos. É mesmo preciso ter um pensamento político sistémico e estruturado sobre o tema, algo que não mora na cabeça da candidata do Partido Socialista.
Pode até alcançar um bom desempenho. Afinal, enfrenta um boneco que ultrapassa pelo lado da caricatura o Jovem Conservador de Direita; e os eleitores de uma certa esquerda, esses, adoram votar no Partido Socialista como aquele bebé que cai sempre no truque do “a mamã não está cá… Está, Está!”, quando se tenta distraí-los na hora da sopa. Tal como o bebé, o eleitor de esquerda fica sempre surpreso com o truque óbvio. Mas na vez de um progenitor que se esconde por detrás de um pano literal, é um partido que se esconde por detrás de um pano de aparências de esquerda.
Enfim, fica aqui o trailer. Prometo um artigo menos cáustico e com mais reflexão na próxima semana.