Desequilíbrios de Novembro
Breve nota sobre a importância de uma narrativa política autónoma
Na discussão desta semana sobre as comemorações do 25 de Novembro, teria sido desejável atingir um justo equilíbrio entre demonstrar a farsa da comemoração da direita, ilustrando a evidência da sua derrota pela voz dos reais vencedores, e, ao mesmo ao mesmo tempo, tentar não resvalar para os beijos na boca a Eanes e a Vasco Lourenço.
Temo que uma certa esquerda com voz pública de que sou próximo tenha cometido o erro de balançar demasiado para a segunda opção. É que a aventura dos que se uniram à ultra-direita sem a garantia de a conseguir controlar, assim como a atividade persecutória que se seguiu, são responsabilidades históricas não secundarizáveis neste espécie de nova síntese de Novembro. O único plano que envolvia intervenção militar externa e podia permitir a sua escalada, recorde-se, vinha deste campo, como sempre pomposamente reconhecido pelo próprio Mário Soares.
Na muito necessária recodificação da história como fator impulsionador de mobilização futura, a esquerda que merece essa designação tem de saber demonstrar como Novembro assinala um conjunto de operações de saneamento político, militar e cultural que garante a não concretização da constituição que viria a ser aprovada em 1976. Isto é, a esquerda tem a ganhar narrativamente quando coloca Novembro como lançando um reequílibrio de poder que garante a traição do texto constitucional, ao contrário de garantir a sua aprovação e defesa, como os membros do Grupo dos Nove gostam de defender.
Em suma: não deixemos que o ganho imediato de contrariar a direita evocando a ausência de lógica formal das suas comemorações nos impeça de ter uma narrativa independente do centro político e ao serviço do potencial mobilizador da história para o nosso campo a longo-prazo.
Concordo: "Novembro assinala um conjunto de operações de saneamento político, militar e cultural que garante a não concretização da constituição que viria a ser aprovada em 1976. Isto é, a esquerda tem a ganhar narrativamente quando coloca Novembro como lançando um reequílibrio de poder que garante a traição do texto constitucional, ao contrário de garantir a sua aprovação e defesa". Ao contrário do que é dito por uma esquerda de que faço parte e que refere que o 25N foi apenas de um golpe “intramilitar da direita” , sem “consequências imediatas na estrutura do poder político”, com o argumento de que a Constituição acabou por ser mais tarde aprovada. Os vencedores do golpe alteraram as regras do jogo, retiraram da equação democrática a legitimidade da iniciativa popular e revolucionária. Quiseram impor o seu próprio dicktat hierárquico nas Forças Armadas para anular a aliança essencial com o movimento popular no processo revolucionário. Os chefes do golpe ordenam a prisão de 118 militares, saneiam da RTP e da Emissora Nacional 82 trabalhadores e demitem as administrações e direções da imprensa pública, substituídas por gente do PS e do PPD ou militares ligados ao golpe. Começa aqui a construção das condições políticas para a reversão de conquistas populares, a destruição de muitas experiências de gestão popular (como o SAAL, entre outras) e a "traição do texto constitucional".
Concordo, no essencial. Não vejo claramente que esquerda está a referir, aquela de que está próximo, mas também não é isso que mais interessa. Claro que a esquerda deve ter e afirmar sem ambiguidade nem taticismos a sua perspetiva do 25N, mas também há que atender a que o campo militar de esquerda tem as suas particularidades, nomeadamente o clima de entendimento que se criou na A25A. Só não concordo inteiramente com a sua ideia de que o 25N ganhou no que respeita à anulação da Constituição. É certo que ela ficou aquém da consagração do que já havia como poder popular e aquém do primeiro pacto MFA-partidos, mas a versão final ainda ficou progressista e instrumento de defesa dos direitos democráticos, ainda hoje. Pois alguma razão o CDS votou contra.