Nas últimas horas, o espaço noticioso foi preenchido com a notícia do cancro de Kate Middleton. Não se tratou de uma referência, mas de múltiplas referências. De diversos ângulos, explorando ao detalhe do tipo de cancro e aproveitando a ocasião para desfiar mais uma vez o novelo da trama real britânica. A SIC Notícias, em particular, desdobrou-se em múltiplas publicações nas redes sociais onde explora o caso à exaustão.
Podemos aceitar isto como normal ou parar para refletir. Quem é Kate Middleton? É a esposa do filho de um chefe-de-estado estrangeiro, o rei inglês. Não é uma represente política portuguesa. Não é uma chefe-de-estado estrangeira. Não é sequer a filha de um chefe-de-estado estrangeiro. É esposa do filho de um chefe-de-estado estrangeiro. Fruto dos métodos de sucessão dinásticos - não democráticos, mas adiante - será a provável esposa de um chefe-de-estado, mas ainda nem o é. De onde emerge a questão: onde reside a fonte deste intenso interesse noticioso? O que motiva a ação editorial dos que criam um frenesim mediático a partir da doença oncológica desta cidadã britânica?
A resposta reside na forma como os meios de comunicação - mesmo os que se acham mais responsáveis e circunspectos- têm a necessidade crescente de estimular as emoções mais básicas dos seus leitores e telespetadores. Nada disto é novo. É tão velho como a já velha teoria sobre a informação de massas. Mas continuamos a assistir a novos patamares, determinados pela inovação tecnológica. Os canais 24h, com sucessões de programas noticiosos e a competição pelos cliques nas redes sociais criam levam a exploração da emoção a níveis cada vez mais impensáveis.
O cancro de um membro de uma família real é, a este propósito, a mercadoria informativa ideal. Em primeiro lugar, é sobre uma família real. Como as monarquias contemporâneas perceberam, a incapacidade de explicarem a sua existência em termos racionais numa ordem liberal pode ser compensada pela adesão emocional ao mundo idealizado que inspiram. A excrescência do velho mundo é tolerada pela forma como se transforma uma mercadoria emocional para a comunicação de massas na nova ordem. Legitima-se a partir da projeção fantasiosa dos sonhos. Não os sonhos de emancipação social - esses, afinal, foram os que levaram Luís XVI à guilhotina - mas às fantasias tão pueris quanto inconsequentes do conto de fadas, histórias para adormecer indivíduos e sociedades órfãs de grandes narrativas. Se a isto somarmos a doença - ainda para mais um cancro - temos o cocktail noticioso ideal: a comoção jorra pelas praças digitais.
Não se trata de criticar a notícia - mereceria a referência noticiosa - nem o drama humano que um cancro causa em quem o descobre. Mas é evidente que esta cobertura mediática é absolutamente desproporcional. A cobertura do drama pessoal de um familiar de um chefe-de-estado estrangeiro só pode ser objeto deste critério editorial se as fundações do critério jornalístico estiverem já enfermas de graves distorções.
Ventura, filho de uma mesma mãe
O que aqui se pretende demonstrar é que, embora possam parecer temas diametrais, a cobertura mediática de Ventura e da doença oncológica da princesa inglesa têm muito em comum. Eles são crias de uma mesma mãe prolífica, que gera e distribui amor pelos seus filhos em função da adesão apaixonada que estes lhe proporcionam. O que torna Ventura uma mercadoria informativa tão sedutora para o espaço comunicacional português é a forma como cada uma das suas declarações é estrategicamente construída para apelar aos mais baixos instintos humanos. Cada referência à criminalidade da comunidade cigana, à insegurança no Martim Moniz, à corrupção deste ou daquele político, são um frenesim emotivo. Despertam paixões, discussões acesas, aberturas de diretos. Quantas pessoas já viu ansiosas para ouvir a reação dos sindicatos à última proposta do acordo de rendimentos? E, por oposição, quantas pessoas já viu na expetativa de ver as declarações de Ventura sobre ciganos? Pois.
De forma particularmente perversa, a repulsa só reforça o seu posicionamento como mercadoria mediática: as audiências não olham à emoção causada em quem vê. Para vender o slot de tempo ao anunciante, a atratividade é a mesma.
O frenesim com o cancro de Kate Middleton e a exposição mediática de que Ventura beneficiou nos últimos anos são reflexos de um mesmo quisto que corrói as fundações da democracia: uma comunicação social que, ao contrário do que gosta de arvorar, não tem um critério editorial baseado na substância. Hoje, quem quiser discutir propostas está condenado a ser considerado “chato”, “aborrecido” e relegado para os últimos 30 segundos burocráticos do fim da linha noticiosa. Pelo contrário, quem estiver disposto a violar todos os princípios da ética e da civilidade terá honras de múltiplas aberturas, desde que apela à emoção. A comunicação social tem hoje um critério de difusão quase indistinguível das redes sociais. O jornalismo como curadoria, como mediação, está em agonia. É uma atmosfera rarefeita de um pathos sobreestimulado a que não resiste qualquer ponderação ou reflexão. Ou causa emoção instantânea ou não serve. Um sobreestímulo que mata a democracia, porque não dá espaço ao debate de substância - onde moram as áreas cinzentas e conteúdo racional - e, por conseguinte, não convida à imediata adesão emocional.
Pensar a ascensão da extrema-direita em Portugal exige um artigo mais profundo, a que me tentarei dedicar. Todavia, o exemplo de hoje pareceu-me ilustrativo de uma parte das explicações para esse fenómeno. Como referiu recentemente Ana Drago no seu espaço de comentário televisivo, quase qualquer político que tivesse tido a mesma exposição mediática de Ventura teria observado uma subida relevante nos seus resultados A afirmação parece-me muito razoável: numa sociedade em que captar a atenção é um exercício cada vez mais complexo, fruto dos múltiplos estímulos, a repetição e a exaustão causam um papel relevante. É a cara que aparece na televisão de casa, a cara que aparece e se debate nos cafés. É o tipo de exposição que, a par de outros fatores de amplificação com que interage, permite causar descontinuidades relevantes na perceção de “quem nos representa”.
A minha perspetiva sobre o que nos reserva a interação da extrema-direita com um jornalismo com tendência para reforçar, no lugar de corrigir, os vieses aqui descritos não é auspiciosa. Claro que a esquerda tem de ser criativa, criar formas de polarização progressista e ser capaz de refazer as grandes narrativas coletivas, adaptando-as à nova infraestrutura social. Só por esse caminho pode retomar a adesão emotiva ao seu projeto. Mas nunca nos enganemos sobre o papel da atmosfera mediática em tudo isto. Mesmo que consiga reconquistar a emotividade associada ao seu projeto, não poderá contar com as televisões para o amplificar. Não procuram uma emoção qualquer. Procuram uma emoção simultaneamente destruidora e inócua. Destruidora para a democracia, inócua para os poderosos. Qualquer coisa que transforme toda a realidade num enorme alinhamento de programa da manhã: entra a secção de crime para instalar o medo, a secção cor-de-rosa para distrair com contos de fadas, da realeza ou da novela, e o segmento em que o apresentador, afluente e de direita, faz um gesto de caridade, a pagar a operação ou os estudos dum qualquer desgraçado que servirá de montra no zoo do pequeno ecrã.
Nada é notícia, nada é discussão de proposta, tudo é entretenimento. Como nos recordam Edward Herman e Noam Chomsky, em Manufacturing Consent, talvez um dos mais citados livre sobre a influência política dos media:
“Num sistema de elevada e crescente desigualdade, o entretenimento é o equivalente contemporâneo dos “jogos de circo” romanos que desviam o público da política e geram uma apatia política que é útil para a preservação do status quo”
Desta teia não devemos esperar nada. Podemos ter com ela uma relação estratégica, explorar os peões de dissensão que ela nos concede e são parte da necessidade aparente de pluralidade, condição necessária à reprodução dócil dos sistemas de opressão. Mas não nos refugiemos em falsas esperanças. Como nos recorda o título de um importante documentário, A revolução não será televisionada.
Num outro contexto, veja-se como um político sem carreira assinalável como Marcelo Rebelo de Sousa, conseguiu fazer-se eleger Presidente da República (eleito por muita gente que vota à esquerda) criando a figura do tio simpático, quando na verdade é a alcoviteira do prédio.